quarta-feira, 29 de abril de 2020

Mais 12 contos de minha autoria

* Procurado vivo ou morto



O xerife, sentado a uma mesa, jogava com mais três cowboys.
De repente um delegado adentra o saloon e dirigindo-se a ele, diz:

- Xerife, "nosso homem" está pescando no Grande Rio.

- Vamos pegá-lo, delegado... Senhores, me desculpem, mas o dever me
chama. - disse o xerife, levantando-se e pegando as moedas que
apostara.

"Ainda bem que o delegado chegou... eu estava com uma "mão" péssima",
pensou ele.

O xerife e o delegado passaram na delegacia, pegaram uma corda com um
laço regulável numa das pontas. Saíram armados com seus revólveres e
rifles, subiram numa carroça puxada por dois belos e escovados cavalos
e partiram para a caçada ao criminoso.

Cerca de uma hora depois avistaram o bandido sentado placidamente à
margem do rio, segurando uma vara e fazendo força para puxar o peixe que
fisgara.

Entretido, o homem nem percebeu quando a carroça parou próxima a ele e
continuou dando linha ao peixe.

O xerife aproximou-se de suas costas, passou o laço em seu pescoço e
começou a puxá-lo em direção a uma grande árvore, sob a qual parara a
carroça.

O homem, puxado pela corda, sentindo que o laço apertava seu pescoço,
andando de costas, mas sem soltar a vara e ainda dando linha, chegou
onde estava a carroça.
O xerife e o delegado, sem se incomodarem com a vara de pescar do homem
nem a linha desta, retesada, o pegaram pelos braços e o colocaram sobre
a carroça. Depois jogaram a corda sobre as laterais desta e o amarraram
firmemente. Subiram na boleia e partiram, colocando os cavalos a trote.

O homem, sentado e amarrado à carroça, em nenhum momento soltara a vara
e a linha retesou-se ainda mais. Ele então deu mais linha.

Quando a carroça estava a uns trinta metros da margem do rio, o xerife
e o delegado ouviram um barulho e sentiram um tombo na carroça.

Ao olharem para tráz, querendo saber o que havia ocorrido com o
prisioneiro, viram um enorme peixe que engolira o pescador e agora
lambia os beiços e palitava os dentes com a vara de pescar.

- FIM -

Salvador, 12 de novembro de 2019.


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* Final de campeonato



A televisão está no volume máximo.

"... mais dois minutos de acréscimo, torcedor. Se esse placar se
mantiver, poderemos soltar o grito de campeão."

Diz o narrador nada imparcial e revelando, como fez durante toda a
narração, por qual equipe está torcendo.

Recostado à cabeceira da cama ele assiste o jogo, cruzando os dedos
cada vez que o time adversário está com a bola, como fez durante todo o
tempo.

Priiiiiiiiiiiiiiiiiii! Priiiiiiiiiiiiii!

"... Apita o árbitro. Acabou, acabou, somos campeões."

Ele se levanta, com um enorme sorriso, deixando cair algumas lágrimas de
emoção e vai até a cozinha gritando a pleno pulmões:

- É campeão... é campeão... é campeão!

Bebe um pouco de água e retorna ao quarto. Volta a recostar-se para
ouvir os comentários e ver a festança em todo o país pela vitória.

Enxuga as lágrimas na camisa do seu clube, sua maior paixão. Só
depois vem o amor à esposa.
Ele sente uma fisgada no peito e grita:

- É campeão... é campeão... é campeão!

Fecha os olhos e continua ouvindo os cronistas opinarem sobre o
maravilhoso espetáculo que seu time deu, enquanto é reprisado o gol
da partida.

"Vencer é muito bom. Vencer por um a zero é muito sofrimento, mas o
que vale é vencer". - Diz um dos cronistas.

___

A esposa voltou do shopping e enquanto coloca o carro na garagem, pensa
no quanto está alto o volume da televisão. Certamente o marido quer que
os vizinhos compartilhem da sua alegria, pois ela já sabia que o time
dele ganhara o jogo.

Assim que entra no quarto, pega o controle da TV no criado-mudo e baixa
o volume a um nível razoável. Ele não reclama. Continua recostado,
agora com os olhos fechados.

Ela toma um banho, veste uma roupa de ficar em casa e vai pra cozinha
esquentar o jantar.

De volta ao quarto, diz:

- Acorda, homem... o jantar está na mesa!

Mas ele nem se abala. Então ela diz:

- Que sono pesado, meu Deus!

Volta a chamá-lo e ele não responde. Então ela o balança pelo ombro e
ele cai pro lado. Está morto!


- FIM -

Salvador, 25 de novembro de 2019.


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* A navalha



A secretária aproximou-se do diretor e disse:

- Senhor, sua cunhada ligou e pediu para o Senhor chegar mais cedo em
casa.

- Obrigado, senhorita. - O chefe respondeu e olhando para o relógio,
pensou: "O que será que ela aprontou dessa vez?"

- Bem, pessoal... já são cinco e quinze. Estou indo. Até amanhã!

Seus funcionários responderão à saudação e continuaram seus afazeres.

- _ -

Enquanto dirigia, falava consigo:

- Já pedi à minha mulher para evitar que a irmã dela fosse lá em casa.
Quando ela está lá, sempre acontece algo inesperado.

- _ -

Ao abrir a porta de casa percebeu que o corredor de entrada fora lavado.
Quando chegou na sala de jantar encontrou a cunhada e a babá do seu
filhinho sentadas no sofá. Sobre a mesa, próxima da cadeirinha alta
do bebê fazer as refeições à mesa, viu uma navalha, ainda com vestígios
de sangue.
Apreensivo, perguntou:

- O que houve, moças?

- Bem, cunhadinho. Quando a menina foi colocar o lixo lá fora, dois
rapazinhos a renderam e entraram com ela.

Ao chegarem aqui na sala, viram o bebê sentadinho à mesa comendo sua
papa de banana amassada com aveia. Um deles se aproximou do neném,
colocou essa navalha sobre a mesa e tentou retirar a criança da
cadeirinha, o que certamente interromperia seu lanche.

Quando o marginal baixou a cabeça para desamarrar o bebê da cadeira,
o menino, tão rápido que não
percebemos, segurou com força a navalha e bateu contra o pescoço do
pivete, provocando um enorme corte.

O sangue saía em borbotões do talho e o bandido e seu comparsa saíram
correndo porta afora, deixando um rio de sangue pela casa.

Com jeitinho tirei a navalha da mão do bebê e a coloquei sobre a mesa,
distante dele, enquanto ele voltava a comer sua papa.
Mandei a menina fechar a porta com a chave e passei a lavar todo o
sangue, enquanto a babá continuava atenta ao bebê, que continuou comendo
sua papa como se nada houvesse acontecido.

E cadê meu filho?

- Está dormindo, Patrão. - respondeu a babá.

O homem pegou a navalha e disse:

- É uma autêntica Solingen alemã. A melhor navalha do mundo!
Será muito útil ao barbear-me!

Fim

Salvador, 17 de outubro de 2019


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* O dono das terras



O homem conduzia sua carroça na qual trazia mulher, filhos ainda
crianças e pequenas criações. Parou à margem do rio e falou, olhando
para um vale tendo uma grande floresta por trás:

- A terra parece fértil! Ficaremos aqui!

Dois meses depois havia construído uma casa, arara a terra, semeara
e aguardava o tempo da colheita, caçando e pescando para comerem.

Passaram-se os dias e, numa manhã, um segundo homem, conduzindo sua
carroça, levando mulher, crianças pequenas e algumas criações, parou
próximo da casa do primeiro e mandou seu povo descer.

O primeiro homem então foi até o segundo e disse:

- Vocês não podem ficar aqui. Estas terras são minhas.

- Mas até onde vão suas terras? - perguntou o outro.

- Até aquelas colinas ali. Suba e desça a colina e as terras serão
suas. Lá também tem rio e floresta.

E assim o segundo homem fez, embora aborrecido por ter que andar mais
ainda.

Quinze dias após essa conversa, apareceu ao primeiro homem um arauto do
Príncipe de Estórias intimando-o a comparecer a uma audiência.
No dia marcado o homem estava no palácio do rei daquelas terras. O
segundo homem também se fez presente.

Na sala do trono, Sir Blind, rei do Reino de Estórias, perguntou ao
primeiro homem:

- Jura dizer a verdade, nada mais do que a verdade, apenas a verdade?

- Juro! - respondeu o primeiro homem.

O segundo homem apenas assistia ao inquérito, já que fora ele quem
fizera a reclamação.

- Quanto tempo tem que o senhor é dono daquelas terras? - perguntou o
rei.

- Muito mais tempo do que o tempo que conheço esse homem, seu arauto,
seu castelo e Vossa Majestade.

- É esta a verdade? - inquiriu o rei.

- Juro, Majestade, por sua coroa! - respondeu o primeiro homem.

Então o rei disse ao primeiro homem:

- Muito bem! O senhor continuará na posse daquelas terras, desde que
não esqueça de pagar os tributos reais.

E virando-se para o segundo homem, o rei disse:

- O caso está encerrado. O senhor também terá a posse das terras após
a colina se não esquecer de pagar as taxas reais.

- Vão em paz e sejam bons vizinhos para a grandeza do meu reino!

Concluiu o rei apertando as mãos dos dois homens e saindo da sala.


- FIM -

Salvador, 30 de janeiro de 2020.


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* Um amor desastroso



- Vá entrando, Júnior.

Júnior entrou e fechou a porta do carro.

- Que tal darmos um passeio no zoológico e depois irmos a um motel?

- Por mim, tudo bem!

E assim fizeram.

Os encontros já duravam três meses, com muito amor e romantismo.

___

- Júnior, hoje iremos a um motelzinho no subúrbio.

- Por mim, tudo bem!

E foram de ônibus até a estação do trem e de trem foram até o tal
subúrbio.
Saltaram do trem, andaram de mãos dadas até o fim da estação, passaram
sobre os trilhos e adentraram o caminho da praia.
Então Irênio fez o Júnior parar e lhe disse:

- Você me transmitiu AIDS. Por que não me falou que era soro positivo,
Júnior?

- Porque você não me perguntou!

- Isto foi muito feio, Júnior e só me resta matá-lo.

- Tudo bem... faça como quiser!

Irênio puxou o 38 da cintura, encostou na testa de Júnior e atirou.
Júnior caiu morto, sem dar um gemido.
Irênio voltou correndo até onde deixara seu carro naquela manhã e saiu
dali velozmente. Quando chegou na ladeira que margeia o mar, reduziu a
velocidade e arremessou o revólver ao mar.
Acelerou mais ainda o veículo e, num ponto previamente escolhido, jogou
o carro contra a amurada, quebrando-a e fazendo com que este
precipitasse contra os rochedos e afundasse no mar.
Agora Irênio também estava morto.

___

Quando Kellia chegou em casa, encontrou um bilhete sobre a cama de
casal. Ela então o leu:

"Meu amor. Quando você encontrar este bilhete eu já estarei morto. Logo
você será avisada pela polícia. Gostaria que você fizesse exames para
ver se eu a contaminei, pois numa falha de caráter, a trai, várias
vezes, com um gay soro positivo. Por favor, não conte esta verdade ao
nosso filho, pois aos 10 anos poderia ficar traumatizado. Peço que,
assim que completar 1 mês da minha morte, que dê entrada na pensão da
Assembleia e no banco requeira o seguro de vida que temos lá. Por Deus,
me perdoe por tê-la magoado tanto. Por último, peço-lhe que queime este
bilhete para evitar que caia em mãos indesejáveis. Com amor, Irênio. "

Com as lágrimas escorrendo, Kellia acendeu o fogo e queimou o bilhete.


- FIM -

Salvador, 17 de dezembro de 2019.


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* Empresário de má fé



Nagi Sacono era um comerciante espertalhão e ganancioso, não medindo o
tamanho das suas falcatruas para crescer.
Tinha sete lojas em São Paulo, as "Lojas Nagi", distribuídas pelos
bairros da cidade.
Um dia recebe uma telefonema de um dos seus "fornecedores" lhe
oferecendo mais de 10000 rádios relógios despertadores trazidos da Zona
Franca de Manaus. O preço, uma bagatela, diante do que pagaria se
comprasse os aparelhos legalmente.
Não titubeou e disse ao fornecedor que enviasse o material para seu
depósito principal, o que foi feito em menos de uma semana.
Nagi dividiu a mercadoria entre suas lojas, cabendo a cada uma 1428
aparelhos que foram anunciados a preços mais baixos do que os da
concorrência, embora fosse produto de marca conhecida.
Estava claro que o material, apesar de comprado legalmente para ser
comercializado em Manaus, fora contrabandeado para Sampa, não se sabendo
como os contraventores fizeram isto. Mas, para Nagi, nada disso
interessava, só importava o lucro que teria.
Infelizmente, por um erro de cálculo, Nagi Sacono mandou vender os
rádios pela metade do preço que pagara e aí se deu mal, pois quando
percebeu a burrada que fizera, menos de uma centena sobrara em cada uma
das suas sete lojas.
Para piorar de vez a merda que se metera, um procurador da Receita
Federal comprou um dos aparelhos e desconfiou por pagar tão barato,
então comunicou o fato à Polícia Federal que iniciou as investigações.

Quatro meses depois, Nagi, indiciado e preso, pedia falência.
Os intermediários e contrabandistas também foram presos, mas a justiça os
liberou para responderem em liberdade, após pagarem uma fiança altíssima.
Nagi também acabou solto.
Na época da falência a Mesbla e a Sandiz dividiram entre si o ativo e o
passivo das empresas do Nagi Sacono.

Perdido, sem saber o que fazer da vida já que perdera todos seus bens
e como não tinha família, Nagi pegou seus últimos trocados e foi ser
garimpeiro em Serra Pelada, no Pará.

Se chegou a encontrar alguma pepita de ouro, não se sabe. O que se sabe
é que ele se meteu a besta com um cabra mais antigo no garimpo por
causa de uma das poucas mulheres que se arriscavam a fazer vida naquele
inferno e se deu mal. Foi esfaqueado e morto. Será que foi enterrado ou
jogaram seu corpo em algum lugar para os urubus comerem?


- FIM -

Salvador, 1 de fevereiro de 2020.


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* Uma viagem inesquecível



Pela tarde passei na agência e comprei as duas passagens, pois para a
bebê não precisaria.
No dia seguinte pela manhã sairia o ônibus. Chegamos quase na hora da
partida, mas embarcamos sem contratempos.
Nossas poltronas ficavam na "cozinha", apelido que se dá à parte
traseira dos ônibus, que balança bastante e ainda tem a quentura e
o barulho do motor, sem falar no fedor que exala do pequeno sanitário.

Me acomodei na poltrona e minha mulher, tendo nossa filhinha ao colo,
estava sentada no canto, ou, como dizemos, "na janela".

A viagem iniciou-se com o sol alto, esquentando os passageiros do lado
contrário ao que estávamos. Após algumas horas de viagem eu já
cochilava e a mulher também.
Em certo momento fui acordado por um passageiro que cutucou meu ombro.
Quando me virei para ele, ele disse:

- O Bebê tá no chão!

Agradeci e acordei a mulher para pegar a menina que estava sobre seus
pés. Ela aconchegou a menina entre nós e colocamos a perna de modo que
evitaria que a criança caísse.
Voltamos a dormir até chegarmos à cidadezinha de destino.

Após aquela confusão de todos quererem saltar ao mesmo tempo,
congestionando o corredor do veículo, peguei nossa pequena mala e saltamos.

Na frente da agência local, reconheci alguns rapazes que havia conhecido
quando crianças, mas não lembro como e nem quando os conheci.
Perguntei por um hotel e me indicaram uma mercearia.
Fomos até lá e falei com uma funcionária sobre os apartamentos para
pernoitarmos.
Ela me disse que não eram apartamentos, mas sim quartos. Perguntei a ela
se tinha banheiro dentro e ela disse que tinha.
Perguntei o preço da diária e ela me deu um valor que achei muito alto.
Ela me disse que era por ser fim de mês, embora fosse dia vinte e
três. Contestei, mas de nada adiantou, então peguei nossa mala e
saímos do estabelecimento.

Pensei em procurar outro hotel, uma pousada ou pensão, mas, tendo como
última opção, deixar a mala na agência de passagens e visitar nossas
duas amigas que moravam ali.

Talvez elas nos convidassem para pernoitarmos em suas casas.

A partir deste momento não lembro de mais nada, a não ser que no dia
seguinte embarcávamos de volta à nossa cidadezinha.

Não lembro se nos hospedamos em algum lugar, não lembro se visitamos
nossas amigas, cujos nomes também não lembro, nem mesmo lembro o que
fomos fazer naquele lugarejo.

Até hoje, quarenta e cinco anos depois, tento lembrar o que aconteceu,
mas não consigo.

Até o momento que estávamos no ônibus de volta à nossa cidadezinha, eu
ainda lembro, mas daí em diante é um branco só.

Nem sei dizer se chegamos em nossa casa!

- FIM -

Salvador, 21 de outubro de 2019.


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* O pescador e a sereia



Dia 13 de agosto. Sexta-feira, quase meia-noite. A lua cheia com seus
raios prateados realçava o dourado das areias daquela praia. Nas
cabanas os pescadores e suas famílias dormiam, acalentados pelo murmurar
do vento nos coqueiros e o marulhar das pequenas ondas batendo nos
cascos dos barcos ancorados na enseada.

Num dos barcos, um pescador vestindo sua melhor roupa, segurando as
mãos de uma belíssima sereia que estava na água e tinha uma coroa de
espuma a ornar-lhe os cabelos, lhe fazia juras de amor. A moça, também
apaixonada, entregava-se às carícias dessa paixão incomum.
À volta deles, diversas outras sereias, com seus cabelos enfeitados de
conchas e algas, sorriam para o casal.

Eles haviam pedido á Vênus que os unisse em matrimônio. Quando o sino de
uma igreja longínqua bateu as doze badaladas, surgiu no horizonte a
comitiva da deusa. Numa carruagem em forma de concha, puxada por oito
cavalos marinhos, vinha deitada Vênus. Nereidas e Amores, montadas em
delfins vinham logo atrás, semeando flores sobre as vagas, enquanto
Cupido as seguia voando. Ninfas, sátiros e faunos fechavam o cortejo,
cantando e dançando sobre as ondas.

Assim que alcançaram o barco do pescador, a comitiva foi recepcionada
pelas sereias que lhes atiraram guirlandas de espumas e algas.

Vênus parou sua carruagem diante dos amantes e lhes disse:

- Cupido me pediu que viesse abençoar o amor de vocês, mas ele esqueceu
de me dizer que havia flechado um humano e uma sereia. Isto me coloca
num dilema: devo transformar o humano num tritão ou a sereia numa
humana?

- Magnífica deusa, se posso escolher, acho que seria mais razoável
transformar minha sereia amada numa humana.
Assim eu poderei trabalhar para nos sustentar, mantendo assim a chama
do amor que nos une.

- Palavras sensatas, jovem pescador. Sendo assim, ordeno que a sereia
saia da água e apareça, já como humana, dentro do barco ao lado do seu
futuro marido.

E assim aconteceu.

- Pelo poder investido em mim pelos deuses, eu os declaro marido e
mulher. Pode beijar a noiva, jovem pescador.

E o casal beijou-se apaixonadamente, ovacionados pelos presentes à
cerimônia.

- Para fechar este casamento com chave de ouro, disse Vênus, gostaria
de proporcionar-lhes a lua-de-mel. Pergunto-lhe, meu jovem pescador,
onde pretende passar sua lua-de-mel?

- Em minha cabana mesmo, Dona Vênus. Obrigado por tudo.

- Que vossa vontade seja feita. - concluiu a deusa, afastando-se com seu
séquito.

Já na cabana com sua esposa, o pescador lhe diz:

- Vou ao supermercado, meu amor. Preciso comprar material de limpeza,
pois este barraco não vê mão de mulher há muito tempo!


- FIM -

Salvador, 16 de dezembro de 2019.


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* A casa da maré



Três meses morando com Lisa, após o convite que esta lhe fizera, Dona
Aída teve a certeza de que ela e seus filhos nunca sairiam da companhia
da moça, como se confirmou, já que elas envelheceram juntas e amigas.

Um dia Aída disse à Lisa que iria visitar suas antigas amigas, no que
Lisa concordou e achou um gesto muito bonito da parte dela.

Então Aída e os meninos pegaram um táxi e rumaram para a Rua da Maré.
Ela sabia que seria triste rever sua antiga casa nas palafitas e nem
sabia se ainda estaria vazia, como a deixou.
Queria ver como ia o povo por lá, embora soubesse que a miséria não
abandona quem nasce com ela.
Atravessou aquela ponte bamboleante que parecia querer afundar na maré,
como as demais por ali. Chegou à sua casa, viu que a porta estava
encostada e a empurrou, embora receosa de encontrar alguém lá dentro.
Não havia ninguém. Seus velhos pertences continuavam ali, intocáveis.
A emoção de rever aquela casa e lembrar dos anos que viveu naquele
lugar, fez com que derramasse algumas lágrimas.
Disse às crianças que fossem ver os amiguinhos daquele triste passado.
Disse também que ela estaria na casa de Célia esperando por eles. Os
meninos saíram correndo por aquelas pontes como se pisassem em terra
firme e não em velhas pontes que balançavam ao sabor do vento e do peso
de quem, acostumado, transitavam por elas.
Célia deu um abraço apertado em Aída e chamou Alice, vizinha e amiga
de ambas para papear com elas.
A conversa vinha fácil e entre risos e lágrimas, elas lembraram os
velhos tempos das dificuldades e das alegrias naqueles duros dias.
Aída contou-lhes a sorte grande que tirara quando seu Fernando fora
descoberto pela Lisa, agora quase uma filha para ela.

Célia disse que ela e Alice tomaram conta da casa e todas as semanas
iam limpá-la, pois não sabiam quando ela voltaria e não queriam que
Aída e as crianças encontrassem a casa suja.

Aída agradeceu às amigas e lhes disse que, pelas graças de Deus, não
voltariam a morar ali, portanto deixava a casa para que elas dessem o
fim que quisessem. Aída chegou na porta da casa da amiga e gritou pelos
filhos. O pôr-do-sol já coloria o céu quando ela e as crianças se foram,
mas prometendo voltar. Convidou as amigas para que fossem com os filhos
visitá-la, pois garantia que seriam muito bem recebidas por Lisa.

Apesar de passarem maus bocados nas palafitas, o coração de Aída tinha
saudades daqueles tempos, mesmo sabendo que foi ali que o pai dos
meninos, bêbado, caiu duma ponte e morreu afogado.

Eles deixaram as palafitas, pegaram um táxi e voltaram para casa.

Quando Lisa chegou, durante o jantar com eles, Aída lhe contou como
fora aquele dia. E duas lágrimas escorreram dos seus olhos!


- FIM -

Salvador, 4 de fevereiro de 2020.


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* Um arauto valoroso



O rei sonhou que era criança e lia um livro de histórias maravilhosas
do oriente que seu pai, rei à época, lhe dera.
Naquela manhã, após as abluções matinais e o desjejum real, mandou
chamar o arauto real:

- Meu querido arauto. Quero que você viaje por meu reino e, se preciso,
pelos reinos vizinhos, afim de encontrar um livro de histórias
maravilhosas do oriente que gostaria de ler para meus filhos e súditos.
Você viajará o tempo necessário para encontrar esse livro do qual não
sei o nome nem a autoria.
Parta ainda hoje, na pequena carruagem azul e leve um criado como
cocheiro.
Peça ao tesoureiro real quantas moedas acredite que sejam necessárias
para as despesas desta difícil empreitada.

- Ouço e cumpro suas ordens, Majestade, meu rei e senhor!

E o arauto saiu da sala de refeições reais para cumprir o mandado do
seu rei.

Naquela tarde, com tudo preparado, eles partiram.

Durante um ano o arauto visitou sebos e livrarias, indagou aqui e ali
até que no Reino das Graças encontrou o tal livro e o comprou.

Era um bonito livro. Capas duras, letras em dourado e vermelhas, com
pequenas iluminuras no início de cada conto.

Retornando ao castelo do seu rei, o arauto leu o livro em voz alta
para que seu cocheiro também o ouvisse, só parando a leitura durante
as refeições, para darem de comer aos cavalos e dormirem nas estalagens
do caminho de volta, numa viagem que duraria cerca de mais um ano.

Quando estavam a algumas léguas do castelo do rei e o arauto já havia
lido todo o livro, uma das rodas da carruagem passou sobre uma pedra e,
com o tombo, o livro foi arremessado para fora, caindo num desfiladeiro
de mais de mil metros de altura e perdeu-se lá embaixo.

O cocheiro, chorando, pediu perdão ao arauto e disse que o rei iria
castigá-lo, mas o arauto o acalmou dizendo que resolveria o problema.

O arauto ainda tentou ver se haveria como recuperar o livro, mas logo
se deu conta que nenhum homem teria como descer naquele buraco.

E assim, depois de dois anos de viagem, chegaram ao castelo de mãos
vazias.

O arauto contou a seu rei o incidente ocorrido quase às portas do
castelo e, apesar de tristonho, o rei perdoou o arauto e o cocheiro.

- Nem tudo está perdido, Majestade! - exclamou o arauto.

- Oh! Como não, nobre arauto? O senhor pretende fazer uma nova viagem
em busca de outro exemplar do livro?

- Não, meu rei e senhor.

- Então se explique, nobre arauto.

- Durante o retorno eu li todo o livro e como tenho todas as histórias
na memória, posso contá-las, Majestade.

E por dois anos e duzentos e setenta e um dias, logo após a ceia no
castelo, o arauto contou para o rei, a rainha, os três príncipes, a
pequena princesa, nobres, fidalgos, cavaleiros e criados, as histórias
que a Scherazade contara no livro "As mil e uma noites".


- FIM -

Salvador, 21 de novembro de 2019.


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* Vingança tardia



Naquela quinta-feira de novembro Tombus City comemorava o Dia de Ação
de Graça, quando o povo aproveita o feriado para agradecer o ano que
passou e pedir um ano vindouro de fartura. As famílias, reunidas
num farto jantar à base de comidas típicas como peru, pão, abóbora,
batata-doce, purê, tortas variadas e outras iguarias, festejam esse
dia orando, perdoando e agradecendo a Deus pela fartura que tiveram.

Carros alegóricos, bandas de música e estudantes desfilavam na rua
principal quando Judy entrou na loja de armas e pediu ao dono um rifle
de repetição, mas o queria devidamente carregado. O homem lhe entregou
um dos melhores que tinha em sua loja. Ela apontou a arma para o
senhor e disparou em sua cabeça, matando-o instantaneamente.

- O rifle tá pago! - exclamou ela, saindo do estabelecimento.

O barulho do tiro foi abafado pelos sons das bandas.

A mulher chegou na igreja quando o povo estava saindo. Assim que avistou
o prefeito, acertou-lhe um tiro no peito. Também atirou no dono do
armazém e num fazendeiro abastado da região, matando a todos.

Enquanto o povo corria esbaforido, sem direção certa, ela se encaminhou
para a delegacia. O xerife, sentado numa cadeira de balanço, encostada
à parede do escritório caiu alvejado no peito por mais um tiro certeiro
da mulher. Ao ouvirem o disparo, os policiais saíram correndo e
encontraram o xerife morto e não virão para que lado o assassino fora.
Logo alguns homens que estavam na praça da matriz chegaram para
comunicar as mortes ao xerife e o encontraram morto.
Então eles disseram aos policiais que a assassina era a Judy, filha do
ferreiro Job.
Os homens se armaram e organizaram uma patrulha para prender a mulher,
que fora vista indo em direção à casa do juiz.
Indo por um atalho a patrulha chegou lá primeiro. Cada homem procurou
um local para se proteger e ficou aguardando a chegada de Judy.
Um dos policiais entrou na casa do juiz e lhe pôs a par dos
acontecimentos. O velho pegou seu revólver e postou-se sob a janela da
sala de sua casa.

Quando Judy adentrou a rua na qual havia uma emboscada para ela, parece
que percebera a presença dos homens, tanto que correu em direção à casa
do juiz, mas antes que alcançasse o portão, caiu de cara na poeira da
rua, alvejada por mais de quinze tiros.

O juiz agradeceu aos homens que salvaram sua vida, dizendo-lhes que
fora melhor ver a assassina morta ali do que vê-la enforcada.

O pai de Judy, o ferreiro Job, envergonhado e triste com a atitude da
filha, mas sabedor da razão daqueles assassinatos, contou no velório
aos amigos, e quem estava presente ouviu, que a filha matara aqueles
homens porque haviam abusado da sua confiança e a usaram sexualmente
quando ela era adolescente e apenas o juiz escapara da sua vingança.

Um mês depois o ferreiro deixava a cidade para sempre!


- FIM -

Salvador, 22 de fevereiro de 2020.


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* Um maestro quilombola



Aos cinco anos, juntamente com seus quatro irmãos menores, foi entregue
pela mãe que estava à beira da morte, a uma tia para serem criados.
O antigo quilombo que moravam ficava num morro, em terras do interior
da Bahia.
Lá embaixo passava a linha férrea e o menino, à tardezinha, descia e
acocorado perto da pequena estação, ficava apreciando a Maria-Fumaça
"beber água e comer carvão" para prosseguir sua viagem para a Bahia,
como diziam os mais velhos.

Até os sete anos ele tinha essa rotina, afinal, ver passar o trem era
uma alegria para as crianças. O maquinista e o foguista que eram sempre
os mesmos, já o conheciam e até trocavam acenos com o menino.

Um dia o chamaram e lhes mostraram o interior da cabine da locomotiva e
ele ficou deslumbrado. Por muitas noites o menino sonhou viajar de trem
para a Bahia.

Pela manhã frequentava a escola. Após o almoço, fazia as tarefas
escolares, brincava com outras crianças de sua faixa de idade, mas na
hora do trem passar acabavam todas as brincadeiras e ele descia para
esperar o trem.

Um dia pediu que o maquinista o levasse para a Bahia, pois queria ser
maestro. Ele aprendera a tocar uma rabeca que ganhara de um dos mais
velhos quilombolas e até tocou para seus amigos da locomotiva.

Num dia de folga, o maquinista subiu ao quilombo e falou com a tia do
menino. Prontamente ela o deu para o homem criar, pois assim teria uma
boca a menos em casa para alimentar. Juntou as poucas coisas da criança
num lençol e eles desceram para a capital no trem da tarde.

___

O maquinista morava no bairro ferroviário com a esposa e dois filhos
quase da idade do menino, que o receberam com amor e amizade. Logo o
menino se enturmou, pois era alegre, educado e respeitoso.

Uma professora de música que conhecia a família do maquinista ouviu o
moleque tocando sua rabeca e prontificou-se a dar-lhe aulas de piano,
sem cobrar nada, desde quando ele tirasse boas notas na escola que foi
matriculado, a mesma que estudavam os filhos do maquinista.

___

Aos dezessete anos concluiu o segundo grau. Incentivado pela professora
de piano, fez uma prova para estudar no Conservatório de Música sendo
aprovado.

Quatro anos depois formava-se em piano e já dava alguns concertos para
professores e colegas. Três anos mais tarde formava-se como maestro e
ganhara, num concurso, uma bolsa para estudar na Itália, berço de
grandes maestros. Estudou italiano com um professor do conservatório
já que a viagem seria dali a cinco meses.

___

Uma vez em Milão, trava conhecimento com importantes compositores como
Carlos Gomes, Verdi, Ponchielli, Boito, Puccini e Wagner, aprendendo
bastante com estes mestres sobre a composição de óperas, embora nenhuma
das suas obras tenham sido reconhecidas.

___

Ao completar sete anos em território italiano, decide retornar à Bahia
e torna-se diretor e professor do Conservatório de Música e regente
da Orquestra desta escola.
Na ocasião tem a honra de reger uma filarmônica para seus familiares e
amigos no bairro ferroviário que viveu com seus pais e irmãos adotivos.

___

Vocês saberiam a qual maestro me refiro?

Não?

Não pensem que o conhecimento e a cultura de vocês deixam a desejar,
afinal, nem eu sei.

Sinto muito, mas a história acima eu sonhei esta noite!


- FIM -

Salvador, 30 de novembro de 2019.


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12 contos de minha autoria

* A borboleta molhada



Desde criança que dormia encolhido, enrolado na coberta, cobrindo pés
e cabeça, do outono ao verão.

Naquele dia sonhara que era uma borboleta que acabara de sair do casulo
sob uma forte chuva. Com as asas molhadas, acaba caindo na terra.

Ao acordar, estava caído no chão do quarto e todo mijado.

- FIM -

Salvador, 23 de novembro de 2019.


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* A rainha destemida



A Rainha, ao perceber que seus cavaleiros não têm força para proteger
seu rei, decide enfrentar aquele bispo.
Nas duas primeiras investidas da dama, o bispo se escondeu atrás de
uma torre, mas na terceira tentativa ela consegue vencê-lo e ainda dar
um xeque-mate no rei dele.

O jogo acabou. Venceu as pretas.


- FIM -

Salvador, 19 de novembro de 2019


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* No tempo da Maria Fumaça



Ao chegar numa pequenina estação, o maquinista resolveu não parar o
comboio, mas baixou a velocidade o máximo possível.
O trem andava mais devagar do que um caracol, mesmo assim alguns
passageiros não conseguiram subir.
Então o maquinista parou o trem uns cem metros adiante.

As pessoas saíram correndo e, num piscar de olhos, conseguiram acessar
os vagões.

O maquinista vira-se para o foguista e exclama:

- Eles podem ser lerdos que nem uma lesma, mas são ótimos corredores!


- FIM -

Salvador, 24 de novembro de 2019.


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* As moscas briguentas



Duas moscas voavam e em pleno voo lutavam disputando o que restara
de um ovo podre dentro de um pedaço da sua casca que repousava no
latão de lixo.

A elas se reuniram outras, querendo desfrutar da iguaria ao dispor
delas, mas sem qualquer intuito de lutarem.

E as duas primeiras moscas entenderam que não adiantaria se matarem
pelo petisco, afinal, como comem tão pouco, daria para dividirem entre
todas o filão.
Então as briguentas baixaram a guarda e pousaram sobre o ovo podre.
De repente, distraídas, não ouviram um sibilar de aerosol e uma nuvem
de inseticida caiu sobre elas. Todas morreram.
E a tampa do latão foi baixada.


- FIM -

Salvador, 1 de novembro de 2019


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* O tapete voador



O jovem queria ser empresário, mas não sabia como empreender e no que
aplicar a grana que herdara dos pais, mortos num acidente num tapete
voador que desfiou, jogando-os ao chão de uma altura de 60 metros.

Ainda bem que eles, os velhos, haviam feito um seguro de vida do qual
ele era o beneficiário.
E foi essa grana do seguro que ele pretendia investir, afinal, se
deixarmos nossa grana parada, a inflação desvaloriza logo logo,
principalmente se estiver em conta corrente sem que seja aplicada.

Então ele pensou e pensou: O que sei eu fazer? Nada!

Então teve uma ideia supimpa.

Comprou vários tapetes voadores, costurou uns aos outros e assim iniciou
sua frota de tapetes voadores coletivos.

E ficou mais rico ainda com essa ideia!


- FIM -

Salvador, 17 de janeiro de 2020.


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* O vigia do museu



Era um exímio entalhador e trabalhava como vigia noturno num museu de
história natural.
Também gostava de pintar e seus quadros eram bastante apreciados pelos
familiares, amigos, colegas e seus superiores.
Entalhava santas, santos, figuras humanas, animais, deusas, deuses e
aquilo que pedissem.
Pintava natureza morta, paisagem, retrato, casario e até por encomenda.

Gostava muito de armar quebra-cabeça, móbile e arapuca para pegar
passarinho. Também fazia gaiolas e esculturas em arame.
Morava numa casinha no fundo do museu há mais de 10 anos e que fora
cedida pela diretoria. Esta casa ficava perto do lago e do bosque que
havia nos fundos do museu e que a este pertencia.
Morava sozinho, pois a esposa morrera e os dois filhos foram trabalhar
noutras paragens.
Pela manhã fazia o almoço, a sopa e o jantar. À tarde dormia até as
seis horas, quando tomava banho, bebia sua sopa, jantava e ia vigiar
o museu. Essa era sua rotina, além dos prazeres do entalhe e dos seus
outros passatempos.

Porém, o que mais gostava na vida era sopa de tutano!

___

Quando o museu incendiou foi que os peritos descobriram que os ossos
dos dinossauros eram quase todos esculpidos em madeira e pintados.


- FIM -

Salvador, 7 de dezembro de 2019.


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* Os pombos da praça



O céu estava azul claro e sem nuvens, como diriam os aviadores, "um céu
de brigadeiro".

Decidi dar um passeio nos arredores e caminhei até a praça da matriz.
Ali, no meio da praça, sentado numa cadeira de braços mais antiga do
que minha lembrança, com um livro em braille nas mãos, pouco se
importando ou se incomodando com os pombos que pousavam em sua cabeça,
seus ombros, nos braços da cadeira ou no livro que trazia aberto sobre
as coxas, na mesma página há muito tempo, certamente distraído com a
leitura, sem sequer piscar, o homem parecia sorrir.

Em volta da sua cadeira, migalhas de pão, alguns grãos de milho
quebrados serviam de alimento aos pombos.

Talvez, entre estes, houvesse alguma pomba, símbolo da Santíssima
Trindade, mas não havia como distingui-la entre as aves.

E, aqui pra nós, não vi nada de santo naqueles pombos impertinentes e
chatos. Alguns, que pousavam na cabeça do homem, a bicavam como se
catassem lêndeas ou piolhos, sei lá.

Em nenhum momento ele se mexeu ou fez cara feia, não que sua cara fosse
bonita, mas como disse lá em cima, ele parecia sorrir da situação.

Em sua camisa, nos ombros e até mesmo nos braços, algumas manchas
escuras deixavam ver que os pombos não tinham qualquer respeito pelo
sujeito e ele ali, quieto, sem nada fazer.

Eu, sentado num banco próximo a ele, conjecturava:

- Se este homem não fosse uma estátua, certamente não teria qualquer
consideração a estes pombos abusados!


- FIM -

Salvador, 8 de janeiro de 2020.


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* Cadê Sua Graça?



Era janeiro. O sol já ia alto quando a comitiva real chegou ao castelo
do Duque. Baixada a ponte levadiça, o arauto disse aos soldados a que
viera. Alguns minutos depois um soldado mensageiro veio recebê-lo ao
portão e lhe disse que Sua Graça não atendia antes de acordar nem antes
do seu desjejum.
Então a comitiva retornou ao castelo do rei.

Era junho. O sol estava bem em cima da comitiva real quando esta chegou
ao portão do castelo do Duque.
Baixada a ponte levadiça o arauto disse aos soldados a que viera.
Alguns minutos depois um soldado mensageiro veio dizer-lhe que Sua
Graça não atendia durante o almoço nem antes da sesta.
Mais uma vez a comitiva retornou ao castelo do rei.

Era dezembro. O sol estava se pondo quando a comitiva real chegou ao
castelo do Duque.
A ponte levadiça foi baixada e o arauto disse aos soldados a que viera.
Sua Graça, pessoalmente, veio recebê-lo.
O arauto do rei, estendendo-lhe um mandado real, deu-lhe voz de prisão.
Dois cavaleiros da comitiva real seguraram o Duque pelos braços e o
fizeram montar num cavalo que lhe fora destinado.
E a comitiva real retornou ao castelo do rei com sua missão cumprida.

Os soldados do Duque ficaram admirados, mas nada disseram, embora a
notícia da prisão de Sua Graça fosse espalhada pelo castelo. Como se
soube depois, até que não houve muito choro.

E o reveillon do Duque foi na masmorra com ratos, baratas, aranhas,
mosquitos e uma jarra de água e um pão duro.

- FIM -

Salvador, 13 de novembro de 2019.


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* A última pelada



O selecionado de Estrela fora convidado para um amistoso na vizinha
Vale do Paraíso.

Contrataram um ônibus para levar os quinze jogadores da equipe. O
percurso era de cerca de duzentos quilómetros e a viagem levaria pouco
mais de duas horas. Os jovens jogadores cantavam, tocavam e brincavam
com a alegria da despreocupação e certos da vitória naquele jogo.
Após o veículo ter percorrido uns cem quilómetros, numa curva sinuosa o
motorista do ônibus se depara com uma carreta ultrapassando outra.
Para evitar a colisão, que seria fatal, ele joga o ônibus para o
acostamento do seu lado da estrada, mas o acostamento é estreito e o
pesado veículo derrapa e rola a ribanceira, enquanto as carretas
desaparecem na próxima curva.
O ônibus Capota umas cinco vezes e para lá embaixo todo quebrado e
amassado, embora esteja com as rodas para baixo e encostado a algumas
árvores. Logo o motorista abre a porta e todos saem do ônibus.
Um dos rapazes sai com uma bola de couro na mão.
Um pouco adiante, após algumas árvores, eles vêm um descampado, então
um dos jovens tem a ideia:

- Vamos jogar uma pelada até que o socorro chegue?

Todos concordaram e dividiram os times, destacando o motorista para
goleiro no time dos sem camisa.

A equipe dos de camisa já ganhavam por seis a três quando um carro da
Polícia Rodoviária parou lá em cima, no acostamento da estrada e os
dois patrulheiros desceram a terrível encosta.
Ao entrarem no ônibus, constataram que os dezesseis ocupantes do veículo
estavam mortos.


- FIM -

Salvador, 18 de novembro de 2019.


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* A aranha vingativa



Pela manhã, ao escovar os dentes, senti alguma coisa tocar em minha
cabeça. Passei a mão e o fio de uma teia enganchou-se em meus dedos.
Ao procurar a aranha, descobri que ela me olhava da prateleira que há
sobre a pia.
Peguei a sandália e coloquei diante dela, ela então subiu e continuou
me olhando. Agachei-me e a sacudi no chão.
Calcei minha sandália e não lhe dei atenção.
Após escovar os dentes, lavar o rosto e trocar de roupa, fui pra
cozinha.
Fiz meu café e sentei-me à mesa para fazer meu desjejum.
Quando saboreava meu café, senti numa das pernas um toque sutil.
Passei a mão e novamente trouxe um fio de teia nos dedos. Descobri que a
aranha me seguira e estava me olhando da fruteira.
Não lhe dei atenção e acabando de tomar meu café fui escovar os dentes
e depois me dirigi ao gabinete. Liguei o computador, abri as janelas
e me sentei diante do teclado. Enquanto aguardava a máquina iniciar,
senti, mais uma vez, um leve toque no braço esquerdo. Mais um fio de
teia havia sido lançado pela aranha que me olhava da mesa do
computador.
Tirei o fio e a olhei de cara fechada:

- Você tá querendo o que, Dona Aranha? - perguntei esperando uma
resposta.

Ela continuou me olhando e não disse nada.
Cheguei a pensar que ela queria me transformar no segundo Homem Aranha
brasileiro, afinal, o primeiro andava escalando paredes para roubar
nos apartamentos. Pensei:

"Será que ela quer me provocar ou apenas deseja chamar minha atenção
para ela? Será que ela quer ser meu animalzinho de estimação?"

Quando o micro falou, ela tomou um susto e caiu da mesa do computador
no chão. Olhei pra ela e vi que corria para debaixo do sofá.
No resto do dia não a vi mais. Acho que ela só queria vingar-se por
eu havê-la importunado no banheiro.


FIM

Salvador, 1 de novembro de 2019


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* O cemitério da serra



Durante 35 anos na boleia da carreta azul ele levara progresso,
bem-estar e alegria para os quatro cantos do país.
Como era um motorista esforçado, trabalhador e responsável, sua
empregadora, a Transportes Pesados, o aposentou com todos os direitos
que merecia. Após dois meses em casa, parado na rotina do nada fazer,
falou para a esposa e seus dois filhos rapazes que voltaria à Vida de
caminhoneiro. E assim fez.
Comprou uma pequena carreta branca, voltou às estradas e novamente era
um homem feliz.
Cinco meses depois, descendo a famosa Serra dos Trambolhões carregado
de manganês, no trecho conhecido como curva dos fantasmas, sentiu uma
mão gelada em seu ombro, perdeu o controle da direção e a carreta saiu
da estrada, descendo desgovernada pela ribanceira. após rolar pela
encosta de pedras, caiu sobre os destroços de outros veículos que
tiveram o mesmo destino do seu.

Com dificuldade, a empresa que a Polícia Rodoviária Federal contratava
para resgatar os corpos das vítimas dos acidentes naquele trecho,
conseguiu entregar o corpo do carreteiro à sua família e o moço foi
enterrado no cemitério de sua cidade natal.
A seguradora considerou o acidente como perda total, da mesma forma que
outras faziam nesses casos e pagou à viúva e seus filhos a indenização
que lhes cabia e que daria para comprar outra carreta, mas eles
preferiram receber em espécie. E assim foi.

Com a pensão que a viúva passou a receber do INSS e a grana do seguro
da carreta, ela e seus filhos compraram um ponto no bairro que moravam
e montaram um pequeno supermercado. Hoje têm três filiais espalhadas
pela cidade.

Voltando ao local do acidente, vemos alguns homens fazendo o desmonte da
carreta branca para abastecer o comércio de peças usadas existente na
parte baixa da serra, da mesma forma que fizeram com todos os veículos
acidentados na descida da perigosa serra.

E a vida continua!


- FIM -

Salvador, 24 de janeiro de 2020.


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* Surfista frustrado

Luís Campos (Blind Joker)


Aos sete anos brincava de gude, jogava pião, empinava pipa; fazia de
uma garrafa de água sanitária cheia de pedrinhas, um pedaço de arame e
cordão, um carro porreta para quem não tem brinquedo comprado.

Aos oito anos jogava bola de meia, brincava de esconde-esconde,
pega-pega e gostava de pendurar-se na traseira dos caminhões de
carroceria, até que caiu. Machucou-se um pouco, teve algumas raladuras e
quase foi atropelado, mas o pior foi o susto. Então desistiu dessa
brincadeira.

Aos dez anos aprendeu a deslizar na praia sobre um pedaço de tábua,
quando a onda que quebrava na areia retornava ao mar. Brincou muito
disso, até que levou uma queda, bebeu muita água e encheu a boca de
areia. Achou melhor procurar uma brincadeira mais segura.

Ainda na praia, via os louros bronzeados surfando e gostou daquilo, mas
havia ficado com medo do mar e de suas ondas, mesmo assim, roubou uma
daquelas pranchas e foi deslizar sobre ela num pequeno e raso riacho que
corria próximo à sua casa. O problema era as pequenas curvas que o
riozinho fazia e ter que, após a brincadeira, lavar a bosta que ficava
grudada na prancha. Cansado, deixou mais essa brincadeira.

Aos treze anos roubou um skate e foi ser surfista de asfalto. Andava
pelas ruas agarrado aos ônibus em grande velocidade, mas aí, numa curva
foi jogado contra um poste. Como disse a enfermeira do pronto-socorro,
Graças a Deus apenas quebrou um braço e teve alguns arranhões.

Aos quinze queria mais emoção e ao ver alguns caras surfando nos trens,
ficou bolado e quis fazer o mesmo.
Observou os carinhas por alguns dias até que achou que dava conta de
fazer o mesmo. Subiu pela janela para o teto do trem como alguns outros
faziam e prestou atenção nos demais.
Mas, nessa sua estreia, com o vento batendo no rosto, a adrenalina em
alta, descuidou-se e bateu no fio de alta tensão, sendo jogado a cerca
de vinte metros, caindo sobre os trilhos.
Já morto, foi atropelado pelo comboio que vinha em sentido contrário.


- FIM -

Salvador, 28 de novembro de 2019.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

O monge e o dragão

O Príncipe Chi Ha Bin, filho do imperador daquelas terras férteis, uma
hora lá decidiu ser monge e partiu, ainda adolescente, para um mosteiro
distante léguas e léguas do império que um dia herdaria.

Após dois anos entre estudos espirituais, filosóficos, gramaticais,
medicinais, homeopáticos, de física, química, matemática, astronomia,
poética e ciências ocultas e outros estudos menos interessantes para um
monge, mas que o povo dominava e eles, às escondidas, praticavam,
recebeu uma carta do seu pai solicitando sua presença na corte para
ajudá-lo numa tarefa árdua e de difícil solução.

O jovem, agora com 18 anos, refletiu uma noite e um dia sobre deixar a
comodidade do mosteiro, os chás psicodélicos, os amigos que fizera
nesses anos e as leituras de textos espirituais e profanos, estes
últimos às escondidas dos velhos monges, mas bastante difundida entre
os jovens.

Pensou, pensou e resolveu que atenderia o pedido do pai e partiu numa
madrugada fria e nevoenta.

Léguas e léguas depois estava diante do castelo do pai. Após as festas
pelo regresso do príncipe que duraram três dias e três noites, o pai o
colocou ciente do que o afligia e atormentava o povo de suas aldeias.

O jovem monge prometeu que livraria seu povo dessa mazela: um grande
dragão alado verde e rosa que sequestrava, sob suas garras, jovens
rapazes das aldeias, deixando-os, um mês depois, novamente onde os
apanhara, mas todos com caras de bobos, lerdos e não dizendo coisa com
coisa.

Alguns dias depois o dragão devolvia um rapaz na aldeia mais próxima do
castelo e viu, numa das janelas, o príncipe que o observava.
O dragão deu um guincho alto e foi pousar numa das torres do castelo
que dava visão para o quarto do rapaz.

O jovem monge então preparou uma beberagem, pegou alguma comida, sua
adaga e sua espada, vestiu-se como um príncipe e disse ao pai que iria
atrás da fera.

Desceu até a estrebaria, arreou seu cavalo, pôs o que levava em alguns
alforges, colocou suas armas e partiu.

Assim que ele saiu do portão do castelo o dragão alçou voo e o seguiu,
voando baixo, mas não muito. Logo passou adiante da montaria do rapaz e,
de vez em quando parava no ar e olhava para trás, como a dizer ao
príncipe que o seguisse. O jovem entendeu o recado e por cerca de meia
hora seguiu o dragão até que o viu entrar numa enorme caverna que
ficava no paredão da colina azul.

Assim que ele chegou à entrada da caverna, adentrou sem qualquer receio
no recinto e encontrou o dragão deitado, tendo a cabeça entre as patas
e parecendo que sorria.

O rapaz, destemido, aproximou-se do bicho e falou:

- Que zorra é essa de ficar sequestrando os jovens das aldeias do nosso
reino?

Com um vozeirão rouco, o dragão respondeu:

- É que gosto da companhia de rapazes. Eles alegram minha vida.

- Então porque os devolve como uns bobos?

- É que eles, depois de um mês comigo, começam a dar sinais de loucura.

- E por que você não os devora?

- Porque sou vegetariano...

- Um dragão vegetariano é difícil de engolir.

- Difícil de engolir é carne. Só como folhas, verduras e frutas.

- E o que os rapazes comiam?

- O mesmo que eu. Eu ia buscar nossa comida todos os dias.

- Estou vendo que essa caverna é escura e fria.

- Quando há algum jovem por aqui, eu acendo um archote que tenho lá
dentro.

- Sim, mas no frio, como eles faziam?

- Eu os agasalhava sob minhas asas.

- E qual é seu jogo, afinal?

- Não tem jogo algum, apenas gosto da companhia de rapazes, como já
disse.

- E por que você me seguiu? Não imaginou que eu queria matá-lo?

- Matar-me, por que? Que mal eu fiz a seu povo, a não ser tirar o
juízo, temporariamente, de alguns jovens tolos?

- E você acha isso pouco?

- Nunca prejudiquei as plantações das suas aldeias, nem abusei da minha
força e nem do meu poder de dragão.

- Nesse ponto você está certo, mas vamos ao que interessa.

- E o que interessa?

- Vamos fazer um acordo.

- Que acordo?

- Eu ficarei aqui com você por três meses e após esse tempo, você deve
desaparecer de nossas terras e procurar um outro lugar para viver... e
que seja muito muito muito longe daqui, certo?

- Hummm! Tô pensando...

- Não tem nada de pensar... é pegar ou largar, senão terei de matá-lo.

- Tá bem, eu topo.

___

Os dias foram passando e Chi Ha Bin vivendo com o dragão e comendo o que
ele trazia da floresta.

Para acender a fogueira noturna, o dragão usava a chama das suas
narinas.
Para passar o tempo, o monge contava histórias até a fera dormir.
Para passar os dias, o príncipe fazia suas beberagens de raiz e folhas
e ambos bebiam e tinham maravilhosas viagens psicodélicas e sonhos
fantásticos e reais.

E o tempo passou, afinal, três meses passam rapidinhos.

___

No dia da partida do rapaz, o dragão, de tristeza, até chorou, mas como
ele havia dado sua palavra de dragão, despediu-se do jovem e levantou
voo em direção imprecisa.

Chi Ha Bin retornou ao castelo de seu pai, contou-lhe tudo que aconteceu
naqueles três meses e disse ao pai que, como agora estavam livres do
dragão, ele voltaria ao mosteiro.

O pai agradeceu e assentiu, desejando-lhe uma boa viagem e anos de
alegria e saúde em sua vida.

Após cavalgar léguas e léguas o jovem monge chegou ao mosteiro.

E sua vida voltou a ser a mesma de antes... e as orgias também.

___

Um dia, um ano depois de sua chegada, o rapaz, na biblioteca, fazia
sua leitura matinal quando ouviu um farfalhar de asas. Curioso, chegou
até a janela e tomou um susto: era o dragão verde e rosa que sobrevoava
o mosteiro e pousava no beiral do telhado.

Ele fez sinal ao dragão e desceu até o jardim.

Quando chegou lá, o dragão já estava.

- Que diabos você faz aqui?

- Senti saudade, Chi Ha Bin... e vim vê-lo!

- Não quero saber de saudade, meu caro. O que tivemos acabou, conforme
combinado.

- Mas esta dor está me matando... já não tenho fome, já não durmo... e
tenho vontade de beber aquele seu chá porreta.

- Acabou-se tudo, meu amigo. Volte para outras terras, que não as do
meu pai e vá viver sua vida como era.

- Viver como era? Nunca mais sequestrei qualquer jovem das terras em que
vivo. Eu agora sou um dragão abandonado e que vive esperando por você.

- Sinto muito, mas, como eu disse, acabou de verdade.

- Olhe que eu me mato, viu?

- Deixe de drama e vá embora, antes que meus colegas me vejam
conversando com um dragão e pensem que estou louco.

- Por amor a você, eu vou... mas você receberá a notícia da minha
morte.

E o dragão alçou voo e voou em direção a uma floresta ali perto.

___

Dias após essa conversa, os monges souberam do grande incêndio que
houve na floresta ali perto.

Foram encontradas algumas árvores derrubadas, formando uma fogueira, e
dentro desta, o cadáver de um dragão verde e rosa.


- FIM -

Luís Campos (Blind Joker)
Salvador, 12 de janeiro de 2020.

Um amor interrompido

Almoço natalino na casa dos Silva, num bairro de classe média.
- Querido, sobrou quase todo o tender. Vou guardá-lo para o jantar e o
almoço de amanhã. Se ainda sobrar, farei uma sopa.
- Oh, querida, você é tão econômica!
- Tenho que economizar pros meus vestidos, meu cabelo, minhas unhas,
minha maquiagem, meus perfumes e minhas bijuterias.
"Eta mulher gastadeira.", pensa o senhor Silva.
- Papai, mamãe, vou ao parque pegar uma fresca.
- Você já é fresco, meu filho, afinal vive de brisa.
- Ora mamãe... me deixe!
E o rapaz sai resmungando em direção ao ponto do ônibus.
- Eles pensam que é moleza fazer faculdade e tirar boas notas!

___

Almoço natalino na casa dos Vaiscontt, num bairro nobre.
- Oh, querido, sobrou o peru quase todo. Vou guardá-lo para o jantar e o
almoço de amanhã.
- Oh, querida... dê tudo aos criados, como sempre. Você sabe que não
gosto de comida requentada nem do dia anterior.
- Posso descontar dos salários deles, como sempre faço, querido?
- Claro querida, afinal já gasto demais com seus ricos vestidos, com o
salão de beleza, sua maquiagem, seus perfumes importados, suas joias
e seu carro.
- É verdade, querido. Esta semana tenho que comprar nossas roupas para
o reveillon no Iate Clube.
- Mamãe, papai, vou dar um passeio no parque. - diz a filha no alto
dos seus 19 anos.
- Cuidado, querida. O parque cada dia está mais perigoso.
- Agora está menos, Papai. Tem muitos policiais por lá.
- Lembre-se, filhinha, que amanhã tem faculdade.
- Tá tudo sob controle, mamãe. Chegarei cedo!
A jovem dá um acenozinho pra eles e sai para pegar seu carro.

___

Naquela tarde, num dos cantos do parque, está se apresentando um grupo
de dança folclórica. Num outro canto um grupo de balé distrai o pessoal.
Perto das lanchonetes, um grupo de pagode toca, no volume mais alto
possível.
Duas patrulhas da Polícia Militar fazem rondas pelo parque.

___

O rapaz salta do ônibus e entra no parque, indo direto pra perto das
lanchonetes. Ele gosta de pagode.
A moça estaciona seu carro, entra no parque e vai direto ver a
apresentação do grupo de balé.

___

Meia hora depois ela vai até uma das lanchonetes beber uma água.
O jovem Silva vê a moça e pisca um olho pra ela. Ela percebe e dá um
sorrisinho pra ele.
Encorajado, ele se aproxima da jovem.
- Olá, menina bonita.
Ela já gostou disso. Não que fosse menina ou feia, mas galanteio é
galanteio e conquista corações.
- Tudo bem? - responde ela.
- Tudo! O que a trouxe ao parque? - pergunta ele.
- Vim assistir o grupo de balé.
- Posso lhe fazer companhia?
- Claro! - responde ela.
Ele passa o braço sobre seus ombros e a segue.
E eles vão para o espaço onde o grupo de balé se apresenta.
Enquanto assistem ao show, trocam beijinhos e carinhos.
No início da noite decidem ir embora.

___

- Você está de carro? - pergunta ela.
- Não!
- Então venha comigo que o levo em sua casa.
- Não precisa. Só preciso do número do seu celular. - diz ele.
- Eu o darei e também quero o seu. Desejo vê-lo novamente.
- Eu desejo o mesmo! - diz ele.
- Meu carro é este aqui. Entre. - diz ela, abrindo as portas.

___

Enquanto ela dirigia, eles conversavam sobre o cotidiano de cada um,
o que fariam no futuro e a possibilidade de um namoro entre eles.
Já estão no bairro que ele mora.
De repente, ela cai com o rosto sobre o volante, o carro fica
descontrolado e bate fortemente contra um poste.
O rapaz morre na hora.
Quando a polícia chegou, constata que ela fora atingida na cabeça por
uma bala perdida.


- FIM -

Luís Campos (Blind Joker)
Salvador, 30 de novembro de 2019.

Um comercial de futuro

Havia um grupo de vestibulandos daquela cidade na rede social.
Ao receberem o resultado das provas, sete moças que haviam passado
criaram um outro grupo, pois elas tinham em comum a intenção de morar
próximo da Universidade, afinal, não teriam como continuar morando no
interior delas e cursar uma faculdade na capital.
E assim fizeram.

O pai de uma delas, comerciante forte na cidade, alugou uma casa e
montou uma república para as sete moças morarem.
Elas se matricularam no mesmo dia e já moravam juntas. O aluguel, as
despesas e a manutenção da casa eram divididas por todas.
Mutuamente se ajudavam nos trabalhos da faculdade e, muitas vezes,
estudaram juntas para as provas.

Esses anos não foram fáceis, mas todas se formaram com louvor. Cada
uma seguiu seu caminho profissional, mas continuaram amigas e sempre
que necessário, davam uma forcinha umas às outras.
Lisa fizera o curso de Cinema e, com a ajuda da família criou uma
pequena agência de modelos e logo encaminhava moças e rapazes para
fazerem figuração em filmes, novelas, comerciais para televisão e
ensaios fotográficos. Em três anos a Agência Monalisa era bastante
conhecida no mercado. Lisa foi contactada para fazer um comercial
institucional sobre os pequenos moradores de rua.

Após uma pesquisa na Internet, saiu em busca dos "atores" nas ruas
centrais da cidade. Sentado sob a marquise de uma loja com as portas
ainda fechadas, viu um menino com cerca de 10 anos e se aproximou.
- Olá, tudo bem?
- Não! Eu tô com fome.
- Então vamos fazer um lanche, topa?
- Topo! - respondeu o menino, levantando-se.

Então Lisa pegou em sua mão e, de mãos dadas, eles entraram numa enorme
lanchonete. Sentaram-se à uma mesa e quando o garção chegou, Lisa disse
ao menino:
- Diga a ele o que você quer comer.
- Quero o maior sanduíche que tem aí... com carne, ovo e queijo.
- Está bem, meu jovem. E pra beber?
- Traga um refrigerante de guaraná. - disse o menino.

Enquanto aguardavam a chegada do lanche, Lisa conversava com o garoto:
- Como é seu nome, rapazinho?
- Na rua me chamam Dito, mas meu nome é Fernando.
- Onde você mora, Fernando... e com quem?
- Na rua da maré com minha mãe e meu irmão menor.
- Eu poderia falar com sua mãe?
- O que você quer com ela?
- Quero lhe pedir que deixe você participar de um pequeno filme que
quero fazer com você e seus amiguinhos da rua.

- Isso você pode falar comigo mesmo, né?
- Mas além de falar com você, tenho que falar com sua mãe, porque você
é só um rapazinho.
- Eu sou um homem, moça...
- Meu nome é Lisa, Fernando. - interrompeu a moça.
- Lisa, eu posso decidir se quero ou não entrar nesse filme. Eu vou
aparecer na TV?
- Vai, sim... em todo o Brasil.

Nesse momento o garção chega com o sanduíche e o refrigerante.
Enquanto Fernando come seu lanche, Lisa o admira como se o visse
diante das câmeras e pensa como o menino fotografa bem.
Quando o garoto acaba de comer, dá um grande arroto. Lisa não diz nada,
apenas sorri.
- Enchi a barriga, Lisa. Desde ontem que não como nada.
- E por quê?
- Porque as pessoas não dão nada a gente. Elas pensam que queremos
roubá-las, mas a gente só quer algumas moedas pra comprar um pão.
- Hoje em dia está difícil confiar nas pessoas, Fernando, mesmo nas
crianças que nem você. Você vai me levar para falar com sua mãe ou não?
- Vou sim... você é muito boazinha.
- Então vamos pegar um táxi para ir até sua casa.
- Eu nunca andei de carro... só de buzu.
- Você sabe dizer ao motorista onde fica sua casa?
- Sei!

Antes de sair, Lisa encomendou ao garção um outro sanduíche igual ao
que Fernando comera e mandou que embrulhasse para viagem. Também pegou
um refrigerante em lata. Ela pagou a conta e eles saíram.
Lisa parou um táxi e eles entraram. Dito falou ao motorista a rua que
morava e o carro partiu. Cerca de meia hora depois o veículo parava
diante de algumas palafitas.
- Chegamos, moça. - disse o taxista.
Lisa pagou a corrida e eles saltaram. Fernando ia na frente e Lisa o
seguia. O menino subiu numa ponte de madeira sobre a maré, quem nem
outras que havia ali e levavam a casas construídas sobre varas fincadas
no fundo daquele pequeno braço do mar.
A porta da casa estava aberta e lá dentro uma mulher esquentava alguma
coisa num fogão de duas bocas, enquanto uma criança de uns quatro anos
brincava com um carrinho no chão de madeira.

- Mãe, trouxe uma moça que quer falar com a senhora.
- Bom-dia, Senhora. Meu nome é Lisa e quero falar com a senhora sobre o
Fernando.
- Olhe aqui, moça. Eu sou pobre, mas não dou meus filhos a ninguém.
- Não é isso que quero, Dona...
- Meu nome é Aída, mas pode me chamar de Dê.
- Pois é, Dona Dê. Sou dona de uma agência de modelos e quero que o
Fernando apareça num pequeno filme que farei.
- A gente vai ganhar algum dinheiro? - perguntou Aída, enquanto o
menino menor se agarrava à sua saia.

- Claro que sim, Dona Dê, mas só depois que o filme for feito.
- Sei... aí você e seu dinheiro nunca mais aparecem por aqui, né?
- Nada disso, Senhora.
- E como eu posso confiar na moça se não a conheço?
- É o seguinte. Se arrume, arrume seus filhos que os levarei para
almoçar na cidade e para conhecer minha agência.
- E como faremos para voltar?

- Eu darei o dinheiro para o táxi.
- Está bem! - respondeu a senhora desligando o fogão e colocando a
panela sobre um caixote.
Lisa virou-se para a criança menor e lhe perguntou:
- E você, rapazinho, como é seu nome?
- José. - falou baixinho o menino.
- Olhe o que eu trouxe para você, José. - disse Lisa, entregando o
sanduíche e a latinha à criança.

O menino abriu um largo sorriso e segurou o embrulho. Fernando,
aproximando-se, disse:
- Deixe que eu lhe ajudo, Zezinho.
- Não! Você quer tirar um pedaço. - respondeu o menino.
- Você não vai dar um pedacinho pra mamãe, filhinho? - perguntou Aída.
- Pra senhora eu dou. Tome aqui. - disse o menino tirando um pedacinho
do sanduíche e entregando à mãe.
- Obrigada, filho.

E Dona Aída, com um sorriso, comeu o pedaço do lanche que o filho lhe
dera. Fernando abriu a lata do refrigerante para o irmãozinho, que,
desconfiado, não largou a lata.
Na casa não havia divisão. Era um vão só com uma cama de casal,
algumas caixas contendo roupas, duas cadeiras e uma mesa mambembe. Num
dos cantos havia um buraco no chão que Lisa supôs ser a latrina deles.
E era!

Meia hora depois eles estavam num táxi rumo ao centro da cidade.
Desceram em frente ao prédio que ficava a Agência Monalisa. Ao entrarem
no escritório, a secretária de Lisa lhe disse que havia alguns recados
sobre sua mesa. Lisa, dizendo a Dona Aída que ficasse à vontade com os
meninos, entrou em sua sala. Ligou o computador, leu os recados, fez
duas ligações e depois saiu para convidar Dona Aída e os meninos para
entrarem em sua sala, convidando-os a sentarem diante de sua mesa.
Então Lisa leu para Dona Dê os termos do contrato do Fernando.
- A Senhora está de acordo ou alguma coisa não ficou clara?
- Você vai mesmo pagar isso tudo pro meu Fernando?
- Claro, Dona Dê. E assim que a Senhora assinar o contrato eu lhe darei
um adiantamento. O restante será pago assim que eu receber dos meus
contratantes.
- O que é contratantes? - perguntou a mulher.
- São as pessoas que me contrataram para fazer o filme com o Fernando,
como agora estou fazendo com a Senhora.
- E quando o Fernando fará esse tal filme?
- Na semana que vem. Eu irei buscá-lo em sua casa e vocês todos ficarão
hospedados em minha casa, enquanto estivermos filmando.
- Que chique, Dona Lisa. Então me dá logo esse papel pra assinar.

Lisa imprimiu o contrato em três vias, entregou à mãe do Fernando para
assinasse e também apôs sua assinatura.
Eles desceram do escritório e Lisa escolheu um restaurante discreto na
Rua das Vendas. Após o lauto almoço, Lisa os colocou num táxi e
marcou de pegá-los na terça-feira próxima.
Lisa arrumou o quarto de hóspedes para Aída e os meninos. Colocou três
camas de solteiro e um guarda-roupa. Comprou roupas de cama e banho
para os três e foi buscá-los.
Quando eles chegaram na casa de Lisa ficaram maravilhados com a beleza
e o conforto. Como prometera, Lisa lhes disse que eles ficariam com ela
até terminarem as filmagens do comercial.

Ela saiu com os três e lhes comprou roupas decentes e apresentáveis.
Lisa disse a Dona Aída que, naquele período, ela assumiria os afazeres
da casa, em troca de um salário. A mulher aceitou e já foi cuidar do
jantar, já que na despensa havia mantimentos para, no mínimo, um mês.
Naquela mesma semana iniciou-se as filmagens, tendo o Fernando dado
conta do recado, juntamente com os demais participantes do filme,
figurantes da própria agência da Lisa.

O comercial foi produzido em menos de cinco semanas e quando foi levado
ao ar, fez o maior sucesso, sendo, inclusive, convidado a participar de
uma mostra internacional.
Com este comercial Lisa passou a ser requisitada para dirigir outros
comerciais e até filmes. Dois meses depois recebeu o dinheiro pelo
trabalho, pagou o acertado com Dona Aída e, como vivia sozinha, a
convidou para continuar morando com ela, juntamente com os meninos.

Colocou as crianças na escola e passou a viver em função dessa nova
família. quatorze anos depois Fernando se formava em Direção teatral
e era admitido como sócio na Monalisa. José, seu irmão menor, cursava
jornalismo. Dona Aída tornara-se amiga e confidente de Lisa e
envelheceram juntas. Sempre que possível, Lisa viajava com eles e
várias vezes visitaram a casa dos pais de Lisa no interior.
Quando Lisa tinha 58 anos e Aída 64, já eram avós dos filhos do José
e do Fernando. Os rapazes, bem sucedidos em suas profissões, casaram
e tinham dois filhos cada, que eram a alegria da casa quando visitavam
Lisa e Dona Aída, duas vovós babonas.

Por causa dos "netos", Lisa comprara uma casa maior e mais confortável
e tornou-se uma obrigação prazerosa receber os rapazes, seus filhos e
suas amadas esposas nos domingos.
E assim foi até que chegou o momento de cada um deixar esta vida!


- FIM -

Luís Campos ()Blind Joker
Salvador, 4 de fevereiro de 2020.

Os baús desaparecidos

Conduzindo sua carroça carregada de
baús de diversos tamanhos, um marcineiro mercava pelas ruas do comércio
local. Era sua primeira aparição por aquelas paragens:
- Baú, baú, baú,
pra guardar o que quiser
Pra menino pra menina,
pro homem e pra mulher.
Vosmicê quer qualidade,
compre baú do Seu Zé!
E assim, cantando esse pregão, aqui e ali, ia vendendo seus baús.
Ao passar na frente duma loja, foi parado pelo comerciante que lhe
encomendou dez baús de tamanho médio. O marcineiro deveria entregar a
encomenda na casa do próspero lojista dentro de trinta dias.
Assim combinados, o marcineiro continuou a mercar seus baús:
- Baú, baú, baú,
pra guardar o que quiser.
Pra menino pra menina,
pro homem e pra mulher.
Vosmicê quer qualidade,
compre baú do Seu Zé!
Quando o marcineiro parou na estalagem para almoçar, já havia vendido
todos os seus baús.
Acabado o almoço e anotado a encomenda do taberneiro, ele empreendeu
viagem de volta. Ele morava num povoado distante dali cerca de duas
léguas.

___

Na data marcada o marcineiro parou diante da casa do lojista e lhe
entregou os dez baús encomendados. Recebeu o pagamento combinado, subiu
em sua carroça e foi percorrer as ruas do povoado para vender os outros
baús que trouxera, cantando seu pregão:.
- Baú, baú, baú,
pra guardar o que quiser.
Pra menino pra menina,
pro homem e pra mulher.
Vosmicê quer qualidade,
compre baú do Seu Zé!

___

Alguns anos depois aquele próspero comerciante morreu de velhice.
A senhora diarista que cuidava da casa do velho comunicou o falecimento
do patrãozinho a seu único herdeiro.
Logo o sobrinho do lojista chegou ao povoado e providenciou o enterro
do tio. Ficou ali hospedado por dois dias e vendeu a loja do tio com
toda a mercadoria a um lojista vizinho deste.
Doou todas as roupas do velho a um abrigo e vendeu todo o mobiliário.
No quarto do tio encontrou um baú com algumas moedas de ouro, prata e
cobre, então indenizou a empregada e colocou a casa à venda, pois não
desejava morar naquele povoado.

___

O mesmo comerciante que comprara a loja do velho amigo, comprou também
sua casa. Após reformá-la, mandou pintar e assim que estava limpa,
passou a morar ali com sua família.
Como sabia que o lojista havia comprado dez baús ao marceneiro, ficou
intrigado porque o sobrinho do velho amigo só encontrara apenas um.
Um dia sonhou com o falecido e no sonho o velho lhe disse onde estavam
os nove baús e que estavam cheios de moedas.
Ao acordar, mandou a esposa e seus dois filhos passarem alguns dias na
casa da sua sogra. Foi ao comércio e comprou uma picareta e uma pá.
Já em casa, retirou do seu quarto a cama de casal e iniciou a cavar bem
no meio do quarto.
Após cavar cerca de meio metro, a picareta bateu em algo. Pegou a pá e
foi cavando até descobrir um baú. Retirou o baú do buraco e o abriu.
Estava realmente cheio de moedas e tinha também algumas lindas joias.
Como ainda faltavam oito baús, retornou ao buraco e reiniciou o
serviço. Cavou por mais uma meia hora e encontrou o oitavo baú.
Após retirar o sexto baú, o buraco já estava bem fundo.
Como ainda faltava retirar o último baú, continuar a cavar.
De repente, as paredes do buraco desmoronaram e ele morreu soterrado.

___

Quando sua esposa chegou em casa com os filhos, encontrou aquele
enorme buraco no centro do quarto e aqueles baús. Ao abrirem os baús e
encontrarem toda aquele tesouro, gritaram de alegria.
Então ela e os filhos trataram de jogar toda a terra dentro do buraco,
limparam o quarto, recolocaram a cama no local devido e se perguntaram
onde estaria o marido.
Como era hora do comércio está aberto, os rapazes foram até a loja do
pai, mas a encontraram fechada.
Em casa encontraram a chave da lojinha e um dos filhos foi abri-la,
enquanto o outro cuidava de limpar a terra dos baús e a mãe cuidava do
almoço.
Pela tarde procuraram o pai por todo o povoado, indagando aqui e ali,
mas sem obterem qualquer indício do paradeiro deste.
- Certamente viajou de emergência e não teve como nos avisar. - disse
a mãe.
Os dias se passavam e eles sem notícias, mas iam vivendo com a
esperança de que ele retornasse.

___

Dois meses transcorridos ainda sem conhecerem o paradeiro do homem, mas
eles diziam a quem perguntava que o comerciante havia viajado ao
exterior.
Como a vida naquele povoado, para quem tinha dinheiro, era enfadonha,
mãe e filhos decidiram vender a loja, a casa e as tralhas e mudarem-se
para a capital.
E assim fizeram.

___

Viviam nababescamente na capital por quase sete anos.
Um dia um oficial de justiça bateu à porta e lhes entregou um mandado
de prisão e, juntamente com a escolta policial, os levou presos.

___

Durante o julgamento ficaram sabendo que o homem que comprara sua casa
decidira fazer uma reforma e mandou cavar a terra com o intuito de
fazer um porão para servir de adega e foi encontrada a ossada do
comerciante.
No julgamento, por mais que alegassem inocência, foram condenados e
morreram na forca.
A casa da capital e os demais bens da família foram confiscados pela
justiça. Os oito baús nunca foram encontrados.


- FIM -

Luís Campos (Blind Joker)
Salvador, 25 de novembro de 2019.

O vendedor de cafézinho

- Olha o cafezinho,
com canela, leite ou pretinho...
- Olha o cafezinho,
Aproveita, minha gente,
que ainda tá quentinho!
Com esse pregão e sempre com um sorriso no rosto, Sandro, um jovem de
17 anos, vendia toda sua "guia" de cafezinho pelas ruas centrais de
Salvador.
A guia era um retângulo todo em madeira com uma alça para segurar a
"caixa" que continha as seis garrafas térmicas.
(Para que um cego mentalize essa guia, digamos que seriam duas a três
caixas de sapato coladas pelo lado menor, tendo nas laterais dos
extremos, uma madeira que ultrapassava a altura das garrafas, ligadas
por uma madeira roliça que servia de alça.)
Tinha também quatro rolimãs à guisa de rodas que facilitava o manuseio
da caixa pelas calçadas, pelo asfalto das ruas e também serviam para
descansar o braço do rapaz. As rodas dianteiras eram móveis para
fazerem as curvas do caminho. Eram controladas por dois arames que iam
do eixo até um pequeno volante preso na parte superior traseira da
caixa. Aí o rapaz "dirigia" seu carrinho de café.

___

O sonho de Sandro era ter uma guia como a de alguns outros vendedores
de cafezinho daqui, que tinham som de CD e desenho de caminhão.
Ele soube que havia um concurso de "carrinhos" de café e planejava
participar com o seu futuro "trio elétrico" de cafezinho.
O rapaz e sua irmã, Alexandra, eram órfãos de pais e moravam com a avó
numa das ruas da Mangueira, bairro itapagipano próximo do Largo do
Papagaio. Ele cursava o segundo ano do segundo grau e a moça o
terceiro e sonhavam fazer uma faculdade, aproveitando-se do recurso das
cotas.
Ambos estudavam numa escola pública pela noite e durante o dia ajudavam
Dona Inês, ele vendendo cafezinho e a moça, agora com 19 anos, na
confecção de pastéis, empadas, coxinhas, bananas reais entre outras
iguarias, além de sair pelo bairro vendendo esses quitutes.
Com o que ganhavam dava para terem um conforto relativo e não lhes
faltar a "misturinha" na hora do almoço.
Como precisavam comprar alguns cadernos, Sandro resolveu que naquela
sexta-feira retornaria ao centro pela tarde para arrecadar mais algum
dinheiro, pois ele vendia toda a sua guia sempre pela manhã, retornando
para casa por volta do meio-dia.
Como eles acordavam lá pras quatro horas da manhã, após o almoço
costumavam tirar uma sesta até umas três horas da tarde, quando
retornavam à lida diária.
Os jovens tinham um computador que dividiam para as pesquisas e
trabalhos escolares.
Naquela tarde, Sandro tivera poucos fregueses para o seu cafezinho,
então resolveu ir ao Campo Grande, afinal, nesta praça sempre tem muita
gente passeando, se exercitando e descansando, principalmente idosos,
seus mais contumazes fregueses.
Perto das dezenove horas havia vendido todo o café, mas, receoso de
descer até o bairro do Comércio para pegar o ônibus que o levaria para
casa, decidiu parar numa banca de jornais que havia por ali e pedir
ajuda ao barraqueiro:
- Moço, boa-noite!
- Boa, meu jovem. Em que posso ajudá-lo?
- Bem, eu não quero comprar nada...
- E o que você quer?
- Gostaria de saber se o Senhor poderia guardar minha guia até amanhã
de manhã, pois estou receoso de ir até o Terminal da França esta hora e
correr o risco de tomarem minha guia.
- É só isso? Coloque aqui seu carrinho, jovem - disse o cidadão abrindo
a portinha lateral da barraca e indicando um dos cantos.
Sandro fez o que o homem mandou, agradeceu e saiu caminhando em direção
ao Comércio.

___

Assim que o rapaz desapareceu na esquina, o homem fechou a barraca e
saiu levando o carrinho das garrafas.
Um rapaz, morador de rua, que estava sentado à porta duma loja que
cerrara sua porta no início da noite, ouvira todo o diálogo e decidiu
seguir o dono da barraca.
O cara seguiu para o bairro do Garcia e entrou numa das vielas dali,
sempre seguido pelo morador de rua.
Após descer uma escadinha, bateu à porta da última casa:
- E aí, meu bródi? - disse ele ao homem que abriu a porta.
- Diga, chapa, qual é a sua? - respondeu o homem.
- Queria trocar essa guia por um pouco de bagulho.
- E por quê?
- Por que a recebi em pagamento de uma dívida e não pretendo vender
cafezinho, né?
- Tem lógica. Quanto quer pela guia?
- Você é quem sabe, mas só as garrafas devem valer uns 150 paus!
- Vou dar 60 paus de bagulho e nada mais!
- Fazer o quê, né?
Nesse momento, o morador de rua que também escutara essa conversa,
interveio:
- Um momento aí, Senhores!
- Quem é você, meu chapa? - perguntou o traficante.
O morador de rua contou o ocorrido no Campo Grande e o traficante ficou
possesso:
- Como é, cara, que você rouba a guia de um garoto e quer trocar por
droga?
- Não é nada disso... eu comprei a guia...
- Mentira, seu moço. O jovem deve aparecer amanhã pela manhã na barraca
desse sacana e ele vai inventar alguma mentira para ludibriar o rapaz.
- Não vai, não, meu chapa. Fernandão, venha cá. - chamou o traficante.
- Diga, Chefe! - falou o bandido, saindo à porta.
- Pegue esse vagabundo - disse apontando para o barraqueiro - pegue a
chave da barraca e o que ele tiver no bolso e lhe dê um corretivo e
depois jogue seu corpo na fossa.
- O Senhor mandou, tá mandado! - exclamou Fernandão, pegando o sujeito
pelo cós da calça e o arrastando pra dentro.
O dono da barraca chorava que nem criança e implorava pela vida.
- Não é preciso tanto, Senhor, - disse o morador de rua - bastava
dar-lhe um corretivo e tudo bem...
- Não é assim que funciona, meu chapa. Uma vez desonesto e corrupto,
vai morrer mais desonesto e mais corrupto ainda. É capaz de ele já
ter aprontado outras dessas. E você, o que é?
- Hoje sou morador de rua, mas sou engenheiro...
- E decidiu morar na rua porquê?
- Porque não conseguia emprego e nem tinha como pagar meu aluguel.
- Cada qual com sua cruz, meu chapa. Leve a chave da barraca, durma lá
e amanhã entregue a guia do rapaz.
- E depois, o que faço com a barraca?
- Sei lá... fique pra você... já deve estar paga. Rê rê rê rê rê rê!
Se perguntarem pelo barraqueiro, diga que ele lhe vendeu a barraca e
sumiu no mundo, afinal, ninguém o achará mesmo. Rê rê rê rê rê!
- Certo. Ficarei morando na barraca até que os familiares do sujeito o
procurem. Quando souber os verdadeiros herdeiros, devolverei a barraca.
- Faça como quiser, meu chapa. Sua cabeça é sua guia.
O traficante entregou a guia e a chave da barraca ao morador de rua e
concluiu:
- Esqueça que esteve aqui, senão eu lembrarei de você, entendeu, meu
chapa?
- Sim Senhor! - respondeu o morador de rua subindo as escadas.

___

Na manhã seguinte, por volta das seis horas, ZEC, o morador de rua
já abrira a barraca e aguardava o jovem. Era quase oito horas quando
Sandro chegou:
- Bom-dia, moço. Cadê o homem da barraca?
- Ele não está mais aqui. Ele me vendeu a barraca e disse que iria
sumir no mundo.
- Ai meu Deus... e minha guia?
- Não se preocupe. Ele deixou aqui e me disse que você viria hoje pela
manhã pegá-la.
- Ufa! Ainda bem. o Senhor me deixa pegá-la para trocar as garrafas por
essas que trouxe aqui na mochila?
- Ora, meu jovem, a guia é sua. Fique à vontade.
Sandro trocou as garrafas, colocando as vazias na mochila e então falou
pro ZEC:
- Senhor...
- Senhor, não, meu rapaz, meu nome é ZEC, que são as iniciais do meu
nome.
- Muito prazer, Seu ZEC, eu sou o Sandro.
- Agora que nos conhecemos, que tal me servir um cafezinho por conta da
casa? - perguntou ZEC sorrindo.
- É pra já, freguês! - respondeu Sandro, também sorrindo e colocando um
cafezinho para si e outro para ZEC.
- Mas, aqui pra nós, começar a vender cafezinho às oito horas não é um
pouco tarde, Sandro?
- Só é, ZEC, mas estou vendendo desde as seis horas.
- Mas eu não o vi mais cedo?
- É que eu vendo na Praça da Piedade... tenho bons fregueses por lá.
- Ah, entendi!
- Mas sabe duma coisa, ZEC. Vou passar a vender meu cafezinho também
aqui no Campo Grande... já estou ficando conhecido desde ontem à tarde.
- Que bom, né, Sandro.
- Bem, Seu ZEC. Tenho que ir, preciso vender todo esse café o mais cedo
possível. Preciso levar as outras garrafas pra casa.
- Se quiser, pode deixar a mochila aqui e quando você for embora vem
buscá-la.
- Obrigadão, Seu ZEC, mas posso levá-la e também ao carrinho. Qualquer
hora eu apareço.
- Certo, Sandro. Boas vendas!
- Obrigado, Seu ZEC... pro Senhor também.

___

ZEC ficou refletindo sobre os últimos acontecimentos e pensou que,
assim que devolvesse a barraca aos legítimos herdeiros do barraqueiro,
iria retomar sua vida e procurar um emprego em sua profissão, afinal,
o Sandro lhe serviu de "conselho".


- FIM -

Luís Campos (Blind Joker)
Salvador, 28 de novembro de 2019.