quinta-feira, 23 de abril de 2020

O monge e o dragão

O Príncipe Chi Ha Bin, filho do imperador daquelas terras férteis, uma
hora lá decidiu ser monge e partiu, ainda adolescente, para um mosteiro
distante léguas e léguas do império que um dia herdaria.

Após dois anos entre estudos espirituais, filosóficos, gramaticais,
medicinais, homeopáticos, de física, química, matemática, astronomia,
poética e ciências ocultas e outros estudos menos interessantes para um
monge, mas que o povo dominava e eles, às escondidas, praticavam,
recebeu uma carta do seu pai solicitando sua presença na corte para
ajudá-lo numa tarefa árdua e de difícil solução.

O jovem, agora com 18 anos, refletiu uma noite e um dia sobre deixar a
comodidade do mosteiro, os chás psicodélicos, os amigos que fizera
nesses anos e as leituras de textos espirituais e profanos, estes
últimos às escondidas dos velhos monges, mas bastante difundida entre
os jovens.

Pensou, pensou e resolveu que atenderia o pedido do pai e partiu numa
madrugada fria e nevoenta.

Léguas e léguas depois estava diante do castelo do pai. Após as festas
pelo regresso do príncipe que duraram três dias e três noites, o pai o
colocou ciente do que o afligia e atormentava o povo de suas aldeias.

O jovem monge prometeu que livraria seu povo dessa mazela: um grande
dragão alado verde e rosa que sequestrava, sob suas garras, jovens
rapazes das aldeias, deixando-os, um mês depois, novamente onde os
apanhara, mas todos com caras de bobos, lerdos e não dizendo coisa com
coisa.

Alguns dias depois o dragão devolvia um rapaz na aldeia mais próxima do
castelo e viu, numa das janelas, o príncipe que o observava.
O dragão deu um guincho alto e foi pousar numa das torres do castelo
que dava visão para o quarto do rapaz.

O jovem monge então preparou uma beberagem, pegou alguma comida, sua
adaga e sua espada, vestiu-se como um príncipe e disse ao pai que iria
atrás da fera.

Desceu até a estrebaria, arreou seu cavalo, pôs o que levava em alguns
alforges, colocou suas armas e partiu.

Assim que ele saiu do portão do castelo o dragão alçou voo e o seguiu,
voando baixo, mas não muito. Logo passou adiante da montaria do rapaz e,
de vez em quando parava no ar e olhava para trás, como a dizer ao
príncipe que o seguisse. O jovem entendeu o recado e por cerca de meia
hora seguiu o dragão até que o viu entrar numa enorme caverna que
ficava no paredão da colina azul.

Assim que ele chegou à entrada da caverna, adentrou sem qualquer receio
no recinto e encontrou o dragão deitado, tendo a cabeça entre as patas
e parecendo que sorria.

O rapaz, destemido, aproximou-se do bicho e falou:

- Que zorra é essa de ficar sequestrando os jovens das aldeias do nosso
reino?

Com um vozeirão rouco, o dragão respondeu:

- É que gosto da companhia de rapazes. Eles alegram minha vida.

- Então porque os devolve como uns bobos?

- É que eles, depois de um mês comigo, começam a dar sinais de loucura.

- E por que você não os devora?

- Porque sou vegetariano...

- Um dragão vegetariano é difícil de engolir.

- Difícil de engolir é carne. Só como folhas, verduras e frutas.

- E o que os rapazes comiam?

- O mesmo que eu. Eu ia buscar nossa comida todos os dias.

- Estou vendo que essa caverna é escura e fria.

- Quando há algum jovem por aqui, eu acendo um archote que tenho lá
dentro.

- Sim, mas no frio, como eles faziam?

- Eu os agasalhava sob minhas asas.

- E qual é seu jogo, afinal?

- Não tem jogo algum, apenas gosto da companhia de rapazes, como já
disse.

- E por que você me seguiu? Não imaginou que eu queria matá-lo?

- Matar-me, por que? Que mal eu fiz a seu povo, a não ser tirar o
juízo, temporariamente, de alguns jovens tolos?

- E você acha isso pouco?

- Nunca prejudiquei as plantações das suas aldeias, nem abusei da minha
força e nem do meu poder de dragão.

- Nesse ponto você está certo, mas vamos ao que interessa.

- E o que interessa?

- Vamos fazer um acordo.

- Que acordo?

- Eu ficarei aqui com você por três meses e após esse tempo, você deve
desaparecer de nossas terras e procurar um outro lugar para viver... e
que seja muito muito muito longe daqui, certo?

- Hummm! Tô pensando...

- Não tem nada de pensar... é pegar ou largar, senão terei de matá-lo.

- Tá bem, eu topo.

___

Os dias foram passando e Chi Ha Bin vivendo com o dragão e comendo o que
ele trazia da floresta.

Para acender a fogueira noturna, o dragão usava a chama das suas
narinas.
Para passar o tempo, o monge contava histórias até a fera dormir.
Para passar os dias, o príncipe fazia suas beberagens de raiz e folhas
e ambos bebiam e tinham maravilhosas viagens psicodélicas e sonhos
fantásticos e reais.

E o tempo passou, afinal, três meses passam rapidinhos.

___

No dia da partida do rapaz, o dragão, de tristeza, até chorou, mas como
ele havia dado sua palavra de dragão, despediu-se do jovem e levantou
voo em direção imprecisa.

Chi Ha Bin retornou ao castelo de seu pai, contou-lhe tudo que aconteceu
naqueles três meses e disse ao pai que, como agora estavam livres do
dragão, ele voltaria ao mosteiro.

O pai agradeceu e assentiu, desejando-lhe uma boa viagem e anos de
alegria e saúde em sua vida.

Após cavalgar léguas e léguas o jovem monge chegou ao mosteiro.

E sua vida voltou a ser a mesma de antes... e as orgias também.

___

Um dia, um ano depois de sua chegada, o rapaz, na biblioteca, fazia
sua leitura matinal quando ouviu um farfalhar de asas. Curioso, chegou
até a janela e tomou um susto: era o dragão verde e rosa que sobrevoava
o mosteiro e pousava no beiral do telhado.

Ele fez sinal ao dragão e desceu até o jardim.

Quando chegou lá, o dragão já estava.

- Que diabos você faz aqui?

- Senti saudade, Chi Ha Bin... e vim vê-lo!

- Não quero saber de saudade, meu caro. O que tivemos acabou, conforme
combinado.

- Mas esta dor está me matando... já não tenho fome, já não durmo... e
tenho vontade de beber aquele seu chá porreta.

- Acabou-se tudo, meu amigo. Volte para outras terras, que não as do
meu pai e vá viver sua vida como era.

- Viver como era? Nunca mais sequestrei qualquer jovem das terras em que
vivo. Eu agora sou um dragão abandonado e que vive esperando por você.

- Sinto muito, mas, como eu disse, acabou de verdade.

- Olhe que eu me mato, viu?

- Deixe de drama e vá embora, antes que meus colegas me vejam
conversando com um dragão e pensem que estou louco.

- Por amor a você, eu vou... mas você receberá a notícia da minha
morte.

E o dragão alçou voo e voou em direção a uma floresta ali perto.

___

Dias após essa conversa, os monges souberam do grande incêndio que
houve na floresta ali perto.

Foram encontradas algumas árvores derrubadas, formando uma fogueira, e
dentro desta, o cadáver de um dragão verde e rosa.


- FIM -

Luís Campos (Blind Joker)
Salvador, 12 de janeiro de 2020.

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