O Príncipe Chi Ha Bin, filho do imperador daquelas terras férteis, uma
hora lá decidiu ser monge e partiu, ainda adolescente, para um mosteiro
distante léguas e léguas do império que um dia herdaria.
Após dois anos entre estudos espirituais, filosóficos, gramaticais,
medicinais, homeopáticos, de física, química, matemática, astronomia,
poética e ciências ocultas e outros estudos menos interessantes para um
monge, mas que o povo dominava e eles, às escondidas, praticavam,
recebeu uma carta do seu pai solicitando sua presença na corte para
ajudá-lo numa tarefa árdua e de difícil solução.
O jovem, agora com 18 anos, refletiu uma noite e um dia sobre deixar a
comodidade do mosteiro, os chás psicodélicos, os amigos que fizera
nesses anos e as leituras de textos espirituais e profanos, estes
últimos às escondidas dos velhos monges, mas bastante difundida entre
os jovens.
Pensou, pensou e resolveu que atenderia o pedido do pai e partiu numa
madrugada fria e nevoenta.
Léguas e léguas depois estava diante do castelo do pai. Após as festas
pelo regresso do príncipe que duraram três dias e três noites, o pai o
colocou ciente do que o afligia e atormentava o povo de suas aldeias.
O jovem monge prometeu que livraria seu povo dessa mazela: um grande
dragão alado verde e rosa que sequestrava, sob suas garras, jovens
rapazes das aldeias, deixando-os, um mês depois, novamente onde os
apanhara, mas todos com caras de bobos, lerdos e não dizendo coisa com
coisa.
Alguns dias depois o dragão devolvia um rapaz na aldeia mais próxima do
castelo e viu, numa das janelas, o príncipe que o observava.
O dragão deu um guincho alto e foi pousar numa das torres do castelo
que dava visão para o quarto do rapaz.
O jovem monge então preparou uma beberagem, pegou alguma comida, sua
adaga e sua espada, vestiu-se como um príncipe e disse ao pai que iria
atrás da fera.
Desceu até a estrebaria, arreou seu cavalo, pôs o que levava em alguns
alforges, colocou suas armas e partiu.
Assim que ele saiu do portão do castelo o dragão alçou voo e o seguiu,
voando baixo, mas não muito. Logo passou adiante da montaria do rapaz e,
de vez em quando parava no ar e olhava para trás, como a dizer ao
príncipe que o seguisse. O jovem entendeu o recado e por cerca de meia
hora seguiu o dragão até que o viu entrar numa enorme caverna que
ficava no paredão da colina azul.
Assim que ele chegou à entrada da caverna, adentrou sem qualquer receio
no recinto e encontrou o dragão deitado, tendo a cabeça entre as patas
e parecendo que sorria.
O rapaz, destemido, aproximou-se do bicho e falou:
- Que zorra é essa de ficar sequestrando os jovens das aldeias do nosso
reino?
Com um vozeirão rouco, o dragão respondeu:
- É que gosto da companhia de rapazes. Eles alegram minha vida.
- Então porque os devolve como uns bobos?
- É que eles, depois de um mês comigo, começam a dar sinais de loucura.
- E por que você não os devora?
- Porque sou vegetariano...
- Um dragão vegetariano é difícil de engolir.
- Difícil de engolir é carne. Só como folhas, verduras e frutas.
- E o que os rapazes comiam?
- O mesmo que eu. Eu ia buscar nossa comida todos os dias.
- Estou vendo que essa caverna é escura e fria.
- Quando há algum jovem por aqui, eu acendo um archote que tenho lá
dentro.
- Sim, mas no frio, como eles faziam?
- Eu os agasalhava sob minhas asas.
- E qual é seu jogo, afinal?
- Não tem jogo algum, apenas gosto da companhia de rapazes, como já
disse.
- E por que você me seguiu? Não imaginou que eu queria matá-lo?
- Matar-me, por que? Que mal eu fiz a seu povo, a não ser tirar o
juízo, temporariamente, de alguns jovens tolos?
- E você acha isso pouco?
- Nunca prejudiquei as plantações das suas aldeias, nem abusei da minha
força e nem do meu poder de dragão.
- Nesse ponto você está certo, mas vamos ao que interessa.
- E o que interessa?
- Vamos fazer um acordo.
- Que acordo?
- Eu ficarei aqui com você por três meses e após esse tempo, você deve
desaparecer de nossas terras e procurar um outro lugar para viver... e
que seja muito muito muito longe daqui, certo?
- Hummm! Tô pensando...
- Não tem nada de pensar... é pegar ou largar, senão terei de matá-lo.
- Tá bem, eu topo.
___
Os dias foram passando e Chi Ha Bin vivendo com o dragão e comendo o que
ele trazia da floresta.
Para acender a fogueira noturna, o dragão usava a chama das suas
narinas.
Para passar o tempo, o monge contava histórias até a fera dormir.
Para passar os dias, o príncipe fazia suas beberagens de raiz e folhas
e ambos bebiam e tinham maravilhosas viagens psicodélicas e sonhos
fantásticos e reais.
E o tempo passou, afinal, três meses passam rapidinhos.
___
No dia da partida do rapaz, o dragão, de tristeza, até chorou, mas como
ele havia dado sua palavra de dragão, despediu-se do jovem e levantou
voo em direção imprecisa.
Chi Ha Bin retornou ao castelo de seu pai, contou-lhe tudo que aconteceu
naqueles três meses e disse ao pai que, como agora estavam livres do
dragão, ele voltaria ao mosteiro.
O pai agradeceu e assentiu, desejando-lhe uma boa viagem e anos de
alegria e saúde em sua vida.
Após cavalgar léguas e léguas o jovem monge chegou ao mosteiro.
E sua vida voltou a ser a mesma de antes... e as orgias também.
___
Um dia, um ano depois de sua chegada, o rapaz, na biblioteca, fazia
sua leitura matinal quando ouviu um farfalhar de asas. Curioso, chegou
até a janela e tomou um susto: era o dragão verde e rosa que sobrevoava
o mosteiro e pousava no beiral do telhado.
Ele fez sinal ao dragão e desceu até o jardim.
Quando chegou lá, o dragão já estava.
- Que diabos você faz aqui?
- Senti saudade, Chi Ha Bin... e vim vê-lo!
- Não quero saber de saudade, meu caro. O que tivemos acabou, conforme
combinado.
- Mas esta dor está me matando... já não tenho fome, já não durmo... e
tenho vontade de beber aquele seu chá porreta.
- Acabou-se tudo, meu amigo. Volte para outras terras, que não as do
meu pai e vá viver sua vida como era.
- Viver como era? Nunca mais sequestrei qualquer jovem das terras em que
vivo. Eu agora sou um dragão abandonado e que vive esperando por você.
- Sinto muito, mas, como eu disse, acabou de verdade.
- Olhe que eu me mato, viu?
- Deixe de drama e vá embora, antes que meus colegas me vejam
conversando com um dragão e pensem que estou louco.
- Por amor a você, eu vou... mas você receberá a notícia da minha
morte.
E o dragão alçou voo e voou em direção a uma floresta ali perto.
___
Dias após essa conversa, os monges souberam do grande incêndio que
houve na floresta ali perto.
Foram encontradas algumas árvores derrubadas, formando uma fogueira, e
dentro desta, o cadáver de um dragão verde e rosa.
- FIM -
Luís Campos (Blind Joker)
Salvador, 12 de janeiro de 2020.
quinta-feira, 23 de abril de 2020
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