quinta-feira, 23 de abril de 2020

A caçada real

Numa manhã de céu azulado e sol forte, o pintor real passeava pelo
bosque que ladeava o castelo do seu rei em busca de inspiração para
novos quadros reais.
A cada ideia, sentava-se num tronco ou numa pedra à beira do caminho e
fazia um esboço em seu caderno de notas.
Já adentrara bastante aquele bosque, contemplando árvores, flores,
arbustos, borboletas e ouvindo o canto de diversos pássaros.
Ao ouvir o rumor de águas, sentiu sede e decidiu saciá-la, saindo da
trilha dirigindo-se à margem de um rio. Colocou seus papéis sobre uma
pedra e, com as mãos em concha, bebeu até saciar-se.
Enquanto bebia, viu alguma coisa brilhar no leito do rio e, curioso,
entrou na água, abaixou-se e pegou o que lhe pareceu um baú.
Era mesmo um baú, não tão pequeno nem tão grande.
Saiu da água, sentou-se à margem e forçou os fechos do baú.
Ele conseguiu abri-lo e ficou abismado com seu conteúdo.
Deixando o baú aberto, deitou-se na relva afim de secar suas roupas.
Por cerca de duas horas ficou ali deitado, admirando o que encontrará.

Já com as roupas secas, fechou o baú, o colocou sob um dos braços,
pegou os rascunhos e voltou ao seu atelier, que ficava numa das
torres do castelo do seu rei.

_ _ _

Colocou o baú sobre uma mesa e começou a retirar o que havia ali.
Encontrou uma paleta, pincéis e tubos de tinta.

Decidido a testar a qualidade das tintas, iniciou a pintura de uma
natureza morta com maçãs, flores e uma taça de vinho.
O quadro ficou esplêndido.

_ _ _

Lá um dia, durante seu almoço, o rei olhou para as paredes e pensou que
a sala de refeições precisava de mais um quadro.
Então o rei mandou chamar o pintor real para pintar-lhe algo que
tivesse ação, pois estava cansado das naturezas mortas e dos retratos
da família real que cobriam as paredes.
O pintor sugeriu-lhe uma tela mostrando uma caçada real, tendo ele à
frente de seus cavaleiros e parceiros de caça.
O rei achou a ideia supimpa e disse ao pintor que pusesse pincéis à
obra. De volta ao atelier, colocando uma tela de um metro por um metro
e meio no cavalete, tendo ao lado aquele baú que encontrara no rio,
o pintor deu início à encomenda do seu rei.

_ _ _

Seu atelier cheirava a maçãs, flores e vinho, coisas que sempre havia
por lá.
O pintor real trabalhou mais de um mês para acabar o quadro, mas a obra
ficou linda e ficaria magnífica na sala de refeições do rei.

Quando o quadro secou, o pintor real a apresentou ao seu rei.

O rei quase chorou de emoção ao ver-se retratado diante de alguns dos
seus cavaleiros com seu arco real na mão e um pouco adiante dos cavalos
uma corça abatida pela flechada que dera em seu pescoço, enquanto um
filhote corria por entre as árvores.

A tela foi imediatamente colocada na parede, defronte da cadeira que
o rei sentava para fazer suas refeições reais.

Tudo corria normalmente naquele reino, mas, três dias depois a sala de
refeições começou a exalar um mau cheiro terrível.
O rei ralhou severamente com seus criados reais quanto à limpeza do
ambiente.
Por mais que se esforçassem no asseio da sala, a cada dia o odor fétido
piorava.
Apesar do rei ameaçá-los com a masmorra, não houve jeito de resolver o
problema e o rei passou a fazer suas refeições na sala do trono real.

Uma semana depois, uma das camareiras passou diante do quadro e sentiu o
mau cheiro. Ela percebeu que ao afastar-se do quadro, o fedor diminuía.
Então ela procurou seu rei e relatou o fato.
O rei, chocado com o inusitado da coisa, mandou chamar o pintor real e
foram juntos até a sala de refeições.
Ao chegarem diante do quadro, ficaram estupefatos ao notarem que o corpo
da corça que fora alvejada pela flecha real é que exalava o nauseabundo
cheiro, como se sua carne estivesse apodrecendo.

Sem titubear, o rei mandou que o pintor real levasse o quadro para seu
atelier e desse um jeito naquilo ou pintasse qualquer outra paisagem
sobre aquela.

_ _ _

O pintor real, seguindo as ordens do seu rei, tapando o nariz, colocou
a tela sobre o cavalete e iniciou a apagar a imagem da corça flechada.
Depois que apagou a imagem do animal, o mau cheiro desapareceu, então
ele modificou a tela. Primeiro pintou a corça viva, fugindo com seu
filhote por entre as árvores e a flecha disparada pelo arco real ele
pintou cravada numa árvore.

_ _ _

E o quadro foi novamente pendurado na sala de refeições reais.

Foi assim que o pintor real descobriu o segredo das tintas que
encontrara no baú e porque seu atelier continuou a exalar cheiro de
maçãs, flores e vinho, mesmo depois que já não tinha nada disso no
local. E ele passou a pintar naturezas mortas com cheiro de natureza
viva.

- FIM -

Luís Campos (Blind Joker)
Salvador, 15 de novembro de 2019.

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