quinta-feira, 23 de abril de 2020

O vendedor de cafézinho

- Olha o cafezinho,
com canela, leite ou pretinho...
- Olha o cafezinho,
Aproveita, minha gente,
que ainda tá quentinho!
Com esse pregão e sempre com um sorriso no rosto, Sandro, um jovem de
17 anos, vendia toda sua "guia" de cafezinho pelas ruas centrais de
Salvador.
A guia era um retângulo todo em madeira com uma alça para segurar a
"caixa" que continha as seis garrafas térmicas.
(Para que um cego mentalize essa guia, digamos que seriam duas a três
caixas de sapato coladas pelo lado menor, tendo nas laterais dos
extremos, uma madeira que ultrapassava a altura das garrafas, ligadas
por uma madeira roliça que servia de alça.)
Tinha também quatro rolimãs à guisa de rodas que facilitava o manuseio
da caixa pelas calçadas, pelo asfalto das ruas e também serviam para
descansar o braço do rapaz. As rodas dianteiras eram móveis para
fazerem as curvas do caminho. Eram controladas por dois arames que iam
do eixo até um pequeno volante preso na parte superior traseira da
caixa. Aí o rapaz "dirigia" seu carrinho de café.

___

O sonho de Sandro era ter uma guia como a de alguns outros vendedores
de cafezinho daqui, que tinham som de CD e desenho de caminhão.
Ele soube que havia um concurso de "carrinhos" de café e planejava
participar com o seu futuro "trio elétrico" de cafezinho.
O rapaz e sua irmã, Alexandra, eram órfãos de pais e moravam com a avó
numa das ruas da Mangueira, bairro itapagipano próximo do Largo do
Papagaio. Ele cursava o segundo ano do segundo grau e a moça o
terceiro e sonhavam fazer uma faculdade, aproveitando-se do recurso das
cotas.
Ambos estudavam numa escola pública pela noite e durante o dia ajudavam
Dona Inês, ele vendendo cafezinho e a moça, agora com 19 anos, na
confecção de pastéis, empadas, coxinhas, bananas reais entre outras
iguarias, além de sair pelo bairro vendendo esses quitutes.
Com o que ganhavam dava para terem um conforto relativo e não lhes
faltar a "misturinha" na hora do almoço.
Como precisavam comprar alguns cadernos, Sandro resolveu que naquela
sexta-feira retornaria ao centro pela tarde para arrecadar mais algum
dinheiro, pois ele vendia toda a sua guia sempre pela manhã, retornando
para casa por volta do meio-dia.
Como eles acordavam lá pras quatro horas da manhã, após o almoço
costumavam tirar uma sesta até umas três horas da tarde, quando
retornavam à lida diária.
Os jovens tinham um computador que dividiam para as pesquisas e
trabalhos escolares.
Naquela tarde, Sandro tivera poucos fregueses para o seu cafezinho,
então resolveu ir ao Campo Grande, afinal, nesta praça sempre tem muita
gente passeando, se exercitando e descansando, principalmente idosos,
seus mais contumazes fregueses.
Perto das dezenove horas havia vendido todo o café, mas, receoso de
descer até o bairro do Comércio para pegar o ônibus que o levaria para
casa, decidiu parar numa banca de jornais que havia por ali e pedir
ajuda ao barraqueiro:
- Moço, boa-noite!
- Boa, meu jovem. Em que posso ajudá-lo?
- Bem, eu não quero comprar nada...
- E o que você quer?
- Gostaria de saber se o Senhor poderia guardar minha guia até amanhã
de manhã, pois estou receoso de ir até o Terminal da França esta hora e
correr o risco de tomarem minha guia.
- É só isso? Coloque aqui seu carrinho, jovem - disse o cidadão abrindo
a portinha lateral da barraca e indicando um dos cantos.
Sandro fez o que o homem mandou, agradeceu e saiu caminhando em direção
ao Comércio.

___

Assim que o rapaz desapareceu na esquina, o homem fechou a barraca e
saiu levando o carrinho das garrafas.
Um rapaz, morador de rua, que estava sentado à porta duma loja que
cerrara sua porta no início da noite, ouvira todo o diálogo e decidiu
seguir o dono da barraca.
O cara seguiu para o bairro do Garcia e entrou numa das vielas dali,
sempre seguido pelo morador de rua.
Após descer uma escadinha, bateu à porta da última casa:
- E aí, meu bródi? - disse ele ao homem que abriu a porta.
- Diga, chapa, qual é a sua? - respondeu o homem.
- Queria trocar essa guia por um pouco de bagulho.
- E por quê?
- Por que a recebi em pagamento de uma dívida e não pretendo vender
cafezinho, né?
- Tem lógica. Quanto quer pela guia?
- Você é quem sabe, mas só as garrafas devem valer uns 150 paus!
- Vou dar 60 paus de bagulho e nada mais!
- Fazer o quê, né?
Nesse momento, o morador de rua que também escutara essa conversa,
interveio:
- Um momento aí, Senhores!
- Quem é você, meu chapa? - perguntou o traficante.
O morador de rua contou o ocorrido no Campo Grande e o traficante ficou
possesso:
- Como é, cara, que você rouba a guia de um garoto e quer trocar por
droga?
- Não é nada disso... eu comprei a guia...
- Mentira, seu moço. O jovem deve aparecer amanhã pela manhã na barraca
desse sacana e ele vai inventar alguma mentira para ludibriar o rapaz.
- Não vai, não, meu chapa. Fernandão, venha cá. - chamou o traficante.
- Diga, Chefe! - falou o bandido, saindo à porta.
- Pegue esse vagabundo - disse apontando para o barraqueiro - pegue a
chave da barraca e o que ele tiver no bolso e lhe dê um corretivo e
depois jogue seu corpo na fossa.
- O Senhor mandou, tá mandado! - exclamou Fernandão, pegando o sujeito
pelo cós da calça e o arrastando pra dentro.
O dono da barraca chorava que nem criança e implorava pela vida.
- Não é preciso tanto, Senhor, - disse o morador de rua - bastava
dar-lhe um corretivo e tudo bem...
- Não é assim que funciona, meu chapa. Uma vez desonesto e corrupto,
vai morrer mais desonesto e mais corrupto ainda. É capaz de ele já
ter aprontado outras dessas. E você, o que é?
- Hoje sou morador de rua, mas sou engenheiro...
- E decidiu morar na rua porquê?
- Porque não conseguia emprego e nem tinha como pagar meu aluguel.
- Cada qual com sua cruz, meu chapa. Leve a chave da barraca, durma lá
e amanhã entregue a guia do rapaz.
- E depois, o que faço com a barraca?
- Sei lá... fique pra você... já deve estar paga. Rê rê rê rê rê rê!
Se perguntarem pelo barraqueiro, diga que ele lhe vendeu a barraca e
sumiu no mundo, afinal, ninguém o achará mesmo. Rê rê rê rê rê!
- Certo. Ficarei morando na barraca até que os familiares do sujeito o
procurem. Quando souber os verdadeiros herdeiros, devolverei a barraca.
- Faça como quiser, meu chapa. Sua cabeça é sua guia.
O traficante entregou a guia e a chave da barraca ao morador de rua e
concluiu:
- Esqueça que esteve aqui, senão eu lembrarei de você, entendeu, meu
chapa?
- Sim Senhor! - respondeu o morador de rua subindo as escadas.

___

Na manhã seguinte, por volta das seis horas, ZEC, o morador de rua
já abrira a barraca e aguardava o jovem. Era quase oito horas quando
Sandro chegou:
- Bom-dia, moço. Cadê o homem da barraca?
- Ele não está mais aqui. Ele me vendeu a barraca e disse que iria
sumir no mundo.
- Ai meu Deus... e minha guia?
- Não se preocupe. Ele deixou aqui e me disse que você viria hoje pela
manhã pegá-la.
- Ufa! Ainda bem. o Senhor me deixa pegá-la para trocar as garrafas por
essas que trouxe aqui na mochila?
- Ora, meu jovem, a guia é sua. Fique à vontade.
Sandro trocou as garrafas, colocando as vazias na mochila e então falou
pro ZEC:
- Senhor...
- Senhor, não, meu rapaz, meu nome é ZEC, que são as iniciais do meu
nome.
- Muito prazer, Seu ZEC, eu sou o Sandro.
- Agora que nos conhecemos, que tal me servir um cafezinho por conta da
casa? - perguntou ZEC sorrindo.
- É pra já, freguês! - respondeu Sandro, também sorrindo e colocando um
cafezinho para si e outro para ZEC.
- Mas, aqui pra nós, começar a vender cafezinho às oito horas não é um
pouco tarde, Sandro?
- Só é, ZEC, mas estou vendendo desde as seis horas.
- Mas eu não o vi mais cedo?
- É que eu vendo na Praça da Piedade... tenho bons fregueses por lá.
- Ah, entendi!
- Mas sabe duma coisa, ZEC. Vou passar a vender meu cafezinho também
aqui no Campo Grande... já estou ficando conhecido desde ontem à tarde.
- Que bom, né, Sandro.
- Bem, Seu ZEC. Tenho que ir, preciso vender todo esse café o mais cedo
possível. Preciso levar as outras garrafas pra casa.
- Se quiser, pode deixar a mochila aqui e quando você for embora vem
buscá-la.
- Obrigadão, Seu ZEC, mas posso levá-la e também ao carrinho. Qualquer
hora eu apareço.
- Certo, Sandro. Boas vendas!
- Obrigado, Seu ZEC... pro Senhor também.

___

ZEC ficou refletindo sobre os últimos acontecimentos e pensou que,
assim que devolvesse a barraca aos legítimos herdeiros do barraqueiro,
iria retomar sua vida e procurar um emprego em sua profissão, afinal,
o Sandro lhe serviu de "conselho".


- FIM -

Luís Campos (Blind Joker)
Salvador, 28 de novembro de 2019.

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