quarta-feira, 29 de abril de 2020

Mais 12 contos de minha autoria

* Procurado vivo ou morto



O xerife, sentado a uma mesa, jogava com mais três cowboys.
De repente um delegado adentra o saloon e dirigindo-se a ele, diz:

- Xerife, "nosso homem" está pescando no Grande Rio.

- Vamos pegá-lo, delegado... Senhores, me desculpem, mas o dever me
chama. - disse o xerife, levantando-se e pegando as moedas que
apostara.

"Ainda bem que o delegado chegou... eu estava com uma "mão" péssima",
pensou ele.

O xerife e o delegado passaram na delegacia, pegaram uma corda com um
laço regulável numa das pontas. Saíram armados com seus revólveres e
rifles, subiram numa carroça puxada por dois belos e escovados cavalos
e partiram para a caçada ao criminoso.

Cerca de uma hora depois avistaram o bandido sentado placidamente à
margem do rio, segurando uma vara e fazendo força para puxar o peixe que
fisgara.

Entretido, o homem nem percebeu quando a carroça parou próxima a ele e
continuou dando linha ao peixe.

O xerife aproximou-se de suas costas, passou o laço em seu pescoço e
começou a puxá-lo em direção a uma grande árvore, sob a qual parara a
carroça.

O homem, puxado pela corda, sentindo que o laço apertava seu pescoço,
andando de costas, mas sem soltar a vara e ainda dando linha, chegou
onde estava a carroça.
O xerife e o delegado, sem se incomodarem com a vara de pescar do homem
nem a linha desta, retesada, o pegaram pelos braços e o colocaram sobre
a carroça. Depois jogaram a corda sobre as laterais desta e o amarraram
firmemente. Subiram na boleia e partiram, colocando os cavalos a trote.

O homem, sentado e amarrado à carroça, em nenhum momento soltara a vara
e a linha retesou-se ainda mais. Ele então deu mais linha.

Quando a carroça estava a uns trinta metros da margem do rio, o xerife
e o delegado ouviram um barulho e sentiram um tombo na carroça.

Ao olharem para tráz, querendo saber o que havia ocorrido com o
prisioneiro, viram um enorme peixe que engolira o pescador e agora
lambia os beiços e palitava os dentes com a vara de pescar.

- FIM -

Salvador, 12 de novembro de 2019.


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* Final de campeonato



A televisão está no volume máximo.

"... mais dois minutos de acréscimo, torcedor. Se esse placar se
mantiver, poderemos soltar o grito de campeão."

Diz o narrador nada imparcial e revelando, como fez durante toda a
narração, por qual equipe está torcendo.

Recostado à cabeceira da cama ele assiste o jogo, cruzando os dedos
cada vez que o time adversário está com a bola, como fez durante todo o
tempo.

Priiiiiiiiiiiiiiiiiii! Priiiiiiiiiiiiii!

"... Apita o árbitro. Acabou, acabou, somos campeões."

Ele se levanta, com um enorme sorriso, deixando cair algumas lágrimas de
emoção e vai até a cozinha gritando a pleno pulmões:

- É campeão... é campeão... é campeão!

Bebe um pouco de água e retorna ao quarto. Volta a recostar-se para
ouvir os comentários e ver a festança em todo o país pela vitória.

Enxuga as lágrimas na camisa do seu clube, sua maior paixão. Só
depois vem o amor à esposa.
Ele sente uma fisgada no peito e grita:

- É campeão... é campeão... é campeão!

Fecha os olhos e continua ouvindo os cronistas opinarem sobre o
maravilhoso espetáculo que seu time deu, enquanto é reprisado o gol
da partida.

"Vencer é muito bom. Vencer por um a zero é muito sofrimento, mas o
que vale é vencer". - Diz um dos cronistas.

___

A esposa voltou do shopping e enquanto coloca o carro na garagem, pensa
no quanto está alto o volume da televisão. Certamente o marido quer que
os vizinhos compartilhem da sua alegria, pois ela já sabia que o time
dele ganhara o jogo.

Assim que entra no quarto, pega o controle da TV no criado-mudo e baixa
o volume a um nível razoável. Ele não reclama. Continua recostado,
agora com os olhos fechados.

Ela toma um banho, veste uma roupa de ficar em casa e vai pra cozinha
esquentar o jantar.

De volta ao quarto, diz:

- Acorda, homem... o jantar está na mesa!

Mas ele nem se abala. Então ela diz:

- Que sono pesado, meu Deus!

Volta a chamá-lo e ele não responde. Então ela o balança pelo ombro e
ele cai pro lado. Está morto!


- FIM -

Salvador, 25 de novembro de 2019.


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* A navalha



A secretária aproximou-se do diretor e disse:

- Senhor, sua cunhada ligou e pediu para o Senhor chegar mais cedo em
casa.

- Obrigado, senhorita. - O chefe respondeu e olhando para o relógio,
pensou: "O que será que ela aprontou dessa vez?"

- Bem, pessoal... já são cinco e quinze. Estou indo. Até amanhã!

Seus funcionários responderão à saudação e continuaram seus afazeres.

- _ -

Enquanto dirigia, falava consigo:

- Já pedi à minha mulher para evitar que a irmã dela fosse lá em casa.
Quando ela está lá, sempre acontece algo inesperado.

- _ -

Ao abrir a porta de casa percebeu que o corredor de entrada fora lavado.
Quando chegou na sala de jantar encontrou a cunhada e a babá do seu
filhinho sentadas no sofá. Sobre a mesa, próxima da cadeirinha alta
do bebê fazer as refeições à mesa, viu uma navalha, ainda com vestígios
de sangue.
Apreensivo, perguntou:

- O que houve, moças?

- Bem, cunhadinho. Quando a menina foi colocar o lixo lá fora, dois
rapazinhos a renderam e entraram com ela.

Ao chegarem aqui na sala, viram o bebê sentadinho à mesa comendo sua
papa de banana amassada com aveia. Um deles se aproximou do neném,
colocou essa navalha sobre a mesa e tentou retirar a criança da
cadeirinha, o que certamente interromperia seu lanche.

Quando o marginal baixou a cabeça para desamarrar o bebê da cadeira,
o menino, tão rápido que não
percebemos, segurou com força a navalha e bateu contra o pescoço do
pivete, provocando um enorme corte.

O sangue saía em borbotões do talho e o bandido e seu comparsa saíram
correndo porta afora, deixando um rio de sangue pela casa.

Com jeitinho tirei a navalha da mão do bebê e a coloquei sobre a mesa,
distante dele, enquanto ele voltava a comer sua papa.
Mandei a menina fechar a porta com a chave e passei a lavar todo o
sangue, enquanto a babá continuava atenta ao bebê, que continuou comendo
sua papa como se nada houvesse acontecido.

E cadê meu filho?

- Está dormindo, Patrão. - respondeu a babá.

O homem pegou a navalha e disse:

- É uma autêntica Solingen alemã. A melhor navalha do mundo!
Será muito útil ao barbear-me!

Fim

Salvador, 17 de outubro de 2019


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* O dono das terras



O homem conduzia sua carroça na qual trazia mulher, filhos ainda
crianças e pequenas criações. Parou à margem do rio e falou, olhando
para um vale tendo uma grande floresta por trás:

- A terra parece fértil! Ficaremos aqui!

Dois meses depois havia construído uma casa, arara a terra, semeara
e aguardava o tempo da colheita, caçando e pescando para comerem.

Passaram-se os dias e, numa manhã, um segundo homem, conduzindo sua
carroça, levando mulher, crianças pequenas e algumas criações, parou
próximo da casa do primeiro e mandou seu povo descer.

O primeiro homem então foi até o segundo e disse:

- Vocês não podem ficar aqui. Estas terras são minhas.

- Mas até onde vão suas terras? - perguntou o outro.

- Até aquelas colinas ali. Suba e desça a colina e as terras serão
suas. Lá também tem rio e floresta.

E assim o segundo homem fez, embora aborrecido por ter que andar mais
ainda.

Quinze dias após essa conversa, apareceu ao primeiro homem um arauto do
Príncipe de Estórias intimando-o a comparecer a uma audiência.
No dia marcado o homem estava no palácio do rei daquelas terras. O
segundo homem também se fez presente.

Na sala do trono, Sir Blind, rei do Reino de Estórias, perguntou ao
primeiro homem:

- Jura dizer a verdade, nada mais do que a verdade, apenas a verdade?

- Juro! - respondeu o primeiro homem.

O segundo homem apenas assistia ao inquérito, já que fora ele quem
fizera a reclamação.

- Quanto tempo tem que o senhor é dono daquelas terras? - perguntou o
rei.

- Muito mais tempo do que o tempo que conheço esse homem, seu arauto,
seu castelo e Vossa Majestade.

- É esta a verdade? - inquiriu o rei.

- Juro, Majestade, por sua coroa! - respondeu o primeiro homem.

Então o rei disse ao primeiro homem:

- Muito bem! O senhor continuará na posse daquelas terras, desde que
não esqueça de pagar os tributos reais.

E virando-se para o segundo homem, o rei disse:

- O caso está encerrado. O senhor também terá a posse das terras após
a colina se não esquecer de pagar as taxas reais.

- Vão em paz e sejam bons vizinhos para a grandeza do meu reino!

Concluiu o rei apertando as mãos dos dois homens e saindo da sala.


- FIM -

Salvador, 30 de janeiro de 2020.


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* Um amor desastroso



- Vá entrando, Júnior.

Júnior entrou e fechou a porta do carro.

- Que tal darmos um passeio no zoológico e depois irmos a um motel?

- Por mim, tudo bem!

E assim fizeram.

Os encontros já duravam três meses, com muito amor e romantismo.

___

- Júnior, hoje iremos a um motelzinho no subúrbio.

- Por mim, tudo bem!

E foram de ônibus até a estação do trem e de trem foram até o tal
subúrbio.
Saltaram do trem, andaram de mãos dadas até o fim da estação, passaram
sobre os trilhos e adentraram o caminho da praia.
Então Irênio fez o Júnior parar e lhe disse:

- Você me transmitiu AIDS. Por que não me falou que era soro positivo,
Júnior?

- Porque você não me perguntou!

- Isto foi muito feio, Júnior e só me resta matá-lo.

- Tudo bem... faça como quiser!

Irênio puxou o 38 da cintura, encostou na testa de Júnior e atirou.
Júnior caiu morto, sem dar um gemido.
Irênio voltou correndo até onde deixara seu carro naquela manhã e saiu
dali velozmente. Quando chegou na ladeira que margeia o mar, reduziu a
velocidade e arremessou o revólver ao mar.
Acelerou mais ainda o veículo e, num ponto previamente escolhido, jogou
o carro contra a amurada, quebrando-a e fazendo com que este
precipitasse contra os rochedos e afundasse no mar.
Agora Irênio também estava morto.

___

Quando Kellia chegou em casa, encontrou um bilhete sobre a cama de
casal. Ela então o leu:

"Meu amor. Quando você encontrar este bilhete eu já estarei morto. Logo
você será avisada pela polícia. Gostaria que você fizesse exames para
ver se eu a contaminei, pois numa falha de caráter, a trai, várias
vezes, com um gay soro positivo. Por favor, não conte esta verdade ao
nosso filho, pois aos 10 anos poderia ficar traumatizado. Peço que,
assim que completar 1 mês da minha morte, que dê entrada na pensão da
Assembleia e no banco requeira o seguro de vida que temos lá. Por Deus,
me perdoe por tê-la magoado tanto. Por último, peço-lhe que queime este
bilhete para evitar que caia em mãos indesejáveis. Com amor, Irênio. "

Com as lágrimas escorrendo, Kellia acendeu o fogo e queimou o bilhete.


- FIM -

Salvador, 17 de dezembro de 2019.


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* Empresário de má fé



Nagi Sacono era um comerciante espertalhão e ganancioso, não medindo o
tamanho das suas falcatruas para crescer.
Tinha sete lojas em São Paulo, as "Lojas Nagi", distribuídas pelos
bairros da cidade.
Um dia recebe uma telefonema de um dos seus "fornecedores" lhe
oferecendo mais de 10000 rádios relógios despertadores trazidos da Zona
Franca de Manaus. O preço, uma bagatela, diante do que pagaria se
comprasse os aparelhos legalmente.
Não titubeou e disse ao fornecedor que enviasse o material para seu
depósito principal, o que foi feito em menos de uma semana.
Nagi dividiu a mercadoria entre suas lojas, cabendo a cada uma 1428
aparelhos que foram anunciados a preços mais baixos do que os da
concorrência, embora fosse produto de marca conhecida.
Estava claro que o material, apesar de comprado legalmente para ser
comercializado em Manaus, fora contrabandeado para Sampa, não se sabendo
como os contraventores fizeram isto. Mas, para Nagi, nada disso
interessava, só importava o lucro que teria.
Infelizmente, por um erro de cálculo, Nagi Sacono mandou vender os
rádios pela metade do preço que pagara e aí se deu mal, pois quando
percebeu a burrada que fizera, menos de uma centena sobrara em cada uma
das suas sete lojas.
Para piorar de vez a merda que se metera, um procurador da Receita
Federal comprou um dos aparelhos e desconfiou por pagar tão barato,
então comunicou o fato à Polícia Federal que iniciou as investigações.

Quatro meses depois, Nagi, indiciado e preso, pedia falência.
Os intermediários e contrabandistas também foram presos, mas a justiça os
liberou para responderem em liberdade, após pagarem uma fiança altíssima.
Nagi também acabou solto.
Na época da falência a Mesbla e a Sandiz dividiram entre si o ativo e o
passivo das empresas do Nagi Sacono.

Perdido, sem saber o que fazer da vida já que perdera todos seus bens
e como não tinha família, Nagi pegou seus últimos trocados e foi ser
garimpeiro em Serra Pelada, no Pará.

Se chegou a encontrar alguma pepita de ouro, não se sabe. O que se sabe
é que ele se meteu a besta com um cabra mais antigo no garimpo por
causa de uma das poucas mulheres que se arriscavam a fazer vida naquele
inferno e se deu mal. Foi esfaqueado e morto. Será que foi enterrado ou
jogaram seu corpo em algum lugar para os urubus comerem?


- FIM -

Salvador, 1 de fevereiro de 2020.


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* Uma viagem inesquecível



Pela tarde passei na agência e comprei as duas passagens, pois para a
bebê não precisaria.
No dia seguinte pela manhã sairia o ônibus. Chegamos quase na hora da
partida, mas embarcamos sem contratempos.
Nossas poltronas ficavam na "cozinha", apelido que se dá à parte
traseira dos ônibus, que balança bastante e ainda tem a quentura e
o barulho do motor, sem falar no fedor que exala do pequeno sanitário.

Me acomodei na poltrona e minha mulher, tendo nossa filhinha ao colo,
estava sentada no canto, ou, como dizemos, "na janela".

A viagem iniciou-se com o sol alto, esquentando os passageiros do lado
contrário ao que estávamos. Após algumas horas de viagem eu já
cochilava e a mulher também.
Em certo momento fui acordado por um passageiro que cutucou meu ombro.
Quando me virei para ele, ele disse:

- O Bebê tá no chão!

Agradeci e acordei a mulher para pegar a menina que estava sobre seus
pés. Ela aconchegou a menina entre nós e colocamos a perna de modo que
evitaria que a criança caísse.
Voltamos a dormir até chegarmos à cidadezinha de destino.

Após aquela confusão de todos quererem saltar ao mesmo tempo,
congestionando o corredor do veículo, peguei nossa pequena mala e saltamos.

Na frente da agência local, reconheci alguns rapazes que havia conhecido
quando crianças, mas não lembro como e nem quando os conheci.
Perguntei por um hotel e me indicaram uma mercearia.
Fomos até lá e falei com uma funcionária sobre os apartamentos para
pernoitarmos.
Ela me disse que não eram apartamentos, mas sim quartos. Perguntei a ela
se tinha banheiro dentro e ela disse que tinha.
Perguntei o preço da diária e ela me deu um valor que achei muito alto.
Ela me disse que era por ser fim de mês, embora fosse dia vinte e
três. Contestei, mas de nada adiantou, então peguei nossa mala e
saímos do estabelecimento.

Pensei em procurar outro hotel, uma pousada ou pensão, mas, tendo como
última opção, deixar a mala na agência de passagens e visitar nossas
duas amigas que moravam ali.

Talvez elas nos convidassem para pernoitarmos em suas casas.

A partir deste momento não lembro de mais nada, a não ser que no dia
seguinte embarcávamos de volta à nossa cidadezinha.

Não lembro se nos hospedamos em algum lugar, não lembro se visitamos
nossas amigas, cujos nomes também não lembro, nem mesmo lembro o que
fomos fazer naquele lugarejo.

Até hoje, quarenta e cinco anos depois, tento lembrar o que aconteceu,
mas não consigo.

Até o momento que estávamos no ônibus de volta à nossa cidadezinha, eu
ainda lembro, mas daí em diante é um branco só.

Nem sei dizer se chegamos em nossa casa!

- FIM -

Salvador, 21 de outubro de 2019.


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* O pescador e a sereia



Dia 13 de agosto. Sexta-feira, quase meia-noite. A lua cheia com seus
raios prateados realçava o dourado das areias daquela praia. Nas
cabanas os pescadores e suas famílias dormiam, acalentados pelo murmurar
do vento nos coqueiros e o marulhar das pequenas ondas batendo nos
cascos dos barcos ancorados na enseada.

Num dos barcos, um pescador vestindo sua melhor roupa, segurando as
mãos de uma belíssima sereia que estava na água e tinha uma coroa de
espuma a ornar-lhe os cabelos, lhe fazia juras de amor. A moça, também
apaixonada, entregava-se às carícias dessa paixão incomum.
À volta deles, diversas outras sereias, com seus cabelos enfeitados de
conchas e algas, sorriam para o casal.

Eles haviam pedido á Vênus que os unisse em matrimônio. Quando o sino de
uma igreja longínqua bateu as doze badaladas, surgiu no horizonte a
comitiva da deusa. Numa carruagem em forma de concha, puxada por oito
cavalos marinhos, vinha deitada Vênus. Nereidas e Amores, montadas em
delfins vinham logo atrás, semeando flores sobre as vagas, enquanto
Cupido as seguia voando. Ninfas, sátiros e faunos fechavam o cortejo,
cantando e dançando sobre as ondas.

Assim que alcançaram o barco do pescador, a comitiva foi recepcionada
pelas sereias que lhes atiraram guirlandas de espumas e algas.

Vênus parou sua carruagem diante dos amantes e lhes disse:

- Cupido me pediu que viesse abençoar o amor de vocês, mas ele esqueceu
de me dizer que havia flechado um humano e uma sereia. Isto me coloca
num dilema: devo transformar o humano num tritão ou a sereia numa
humana?

- Magnífica deusa, se posso escolher, acho que seria mais razoável
transformar minha sereia amada numa humana.
Assim eu poderei trabalhar para nos sustentar, mantendo assim a chama
do amor que nos une.

- Palavras sensatas, jovem pescador. Sendo assim, ordeno que a sereia
saia da água e apareça, já como humana, dentro do barco ao lado do seu
futuro marido.

E assim aconteceu.

- Pelo poder investido em mim pelos deuses, eu os declaro marido e
mulher. Pode beijar a noiva, jovem pescador.

E o casal beijou-se apaixonadamente, ovacionados pelos presentes à
cerimônia.

- Para fechar este casamento com chave de ouro, disse Vênus, gostaria
de proporcionar-lhes a lua-de-mel. Pergunto-lhe, meu jovem pescador,
onde pretende passar sua lua-de-mel?

- Em minha cabana mesmo, Dona Vênus. Obrigado por tudo.

- Que vossa vontade seja feita. - concluiu a deusa, afastando-se com seu
séquito.

Já na cabana com sua esposa, o pescador lhe diz:

- Vou ao supermercado, meu amor. Preciso comprar material de limpeza,
pois este barraco não vê mão de mulher há muito tempo!


- FIM -

Salvador, 16 de dezembro de 2019.


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* A casa da maré



Três meses morando com Lisa, após o convite que esta lhe fizera, Dona
Aída teve a certeza de que ela e seus filhos nunca sairiam da companhia
da moça, como se confirmou, já que elas envelheceram juntas e amigas.

Um dia Aída disse à Lisa que iria visitar suas antigas amigas, no que
Lisa concordou e achou um gesto muito bonito da parte dela.

Então Aída e os meninos pegaram um táxi e rumaram para a Rua da Maré.
Ela sabia que seria triste rever sua antiga casa nas palafitas e nem
sabia se ainda estaria vazia, como a deixou.
Queria ver como ia o povo por lá, embora soubesse que a miséria não
abandona quem nasce com ela.
Atravessou aquela ponte bamboleante que parecia querer afundar na maré,
como as demais por ali. Chegou à sua casa, viu que a porta estava
encostada e a empurrou, embora receosa de encontrar alguém lá dentro.
Não havia ninguém. Seus velhos pertences continuavam ali, intocáveis.
A emoção de rever aquela casa e lembrar dos anos que viveu naquele
lugar, fez com que derramasse algumas lágrimas.
Disse às crianças que fossem ver os amiguinhos daquele triste passado.
Disse também que ela estaria na casa de Célia esperando por eles. Os
meninos saíram correndo por aquelas pontes como se pisassem em terra
firme e não em velhas pontes que balançavam ao sabor do vento e do peso
de quem, acostumado, transitavam por elas.
Célia deu um abraço apertado em Aída e chamou Alice, vizinha e amiga
de ambas para papear com elas.
A conversa vinha fácil e entre risos e lágrimas, elas lembraram os
velhos tempos das dificuldades e das alegrias naqueles duros dias.
Aída contou-lhes a sorte grande que tirara quando seu Fernando fora
descoberto pela Lisa, agora quase uma filha para ela.

Célia disse que ela e Alice tomaram conta da casa e todas as semanas
iam limpá-la, pois não sabiam quando ela voltaria e não queriam que
Aída e as crianças encontrassem a casa suja.

Aída agradeceu às amigas e lhes disse que, pelas graças de Deus, não
voltariam a morar ali, portanto deixava a casa para que elas dessem o
fim que quisessem. Aída chegou na porta da casa da amiga e gritou pelos
filhos. O pôr-do-sol já coloria o céu quando ela e as crianças se foram,
mas prometendo voltar. Convidou as amigas para que fossem com os filhos
visitá-la, pois garantia que seriam muito bem recebidas por Lisa.

Apesar de passarem maus bocados nas palafitas, o coração de Aída tinha
saudades daqueles tempos, mesmo sabendo que foi ali que o pai dos
meninos, bêbado, caiu duma ponte e morreu afogado.

Eles deixaram as palafitas, pegaram um táxi e voltaram para casa.

Quando Lisa chegou, durante o jantar com eles, Aída lhe contou como
fora aquele dia. E duas lágrimas escorreram dos seus olhos!


- FIM -

Salvador, 4 de fevereiro de 2020.


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* Um arauto valoroso



O rei sonhou que era criança e lia um livro de histórias maravilhosas
do oriente que seu pai, rei à época, lhe dera.
Naquela manhã, após as abluções matinais e o desjejum real, mandou
chamar o arauto real:

- Meu querido arauto. Quero que você viaje por meu reino e, se preciso,
pelos reinos vizinhos, afim de encontrar um livro de histórias
maravilhosas do oriente que gostaria de ler para meus filhos e súditos.
Você viajará o tempo necessário para encontrar esse livro do qual não
sei o nome nem a autoria.
Parta ainda hoje, na pequena carruagem azul e leve um criado como
cocheiro.
Peça ao tesoureiro real quantas moedas acredite que sejam necessárias
para as despesas desta difícil empreitada.

- Ouço e cumpro suas ordens, Majestade, meu rei e senhor!

E o arauto saiu da sala de refeições reais para cumprir o mandado do
seu rei.

Naquela tarde, com tudo preparado, eles partiram.

Durante um ano o arauto visitou sebos e livrarias, indagou aqui e ali
até que no Reino das Graças encontrou o tal livro e o comprou.

Era um bonito livro. Capas duras, letras em dourado e vermelhas, com
pequenas iluminuras no início de cada conto.

Retornando ao castelo do seu rei, o arauto leu o livro em voz alta
para que seu cocheiro também o ouvisse, só parando a leitura durante
as refeições, para darem de comer aos cavalos e dormirem nas estalagens
do caminho de volta, numa viagem que duraria cerca de mais um ano.

Quando estavam a algumas léguas do castelo do rei e o arauto já havia
lido todo o livro, uma das rodas da carruagem passou sobre uma pedra e,
com o tombo, o livro foi arremessado para fora, caindo num desfiladeiro
de mais de mil metros de altura e perdeu-se lá embaixo.

O cocheiro, chorando, pediu perdão ao arauto e disse que o rei iria
castigá-lo, mas o arauto o acalmou dizendo que resolveria o problema.

O arauto ainda tentou ver se haveria como recuperar o livro, mas logo
se deu conta que nenhum homem teria como descer naquele buraco.

E assim, depois de dois anos de viagem, chegaram ao castelo de mãos
vazias.

O arauto contou a seu rei o incidente ocorrido quase às portas do
castelo e, apesar de tristonho, o rei perdoou o arauto e o cocheiro.

- Nem tudo está perdido, Majestade! - exclamou o arauto.

- Oh! Como não, nobre arauto? O senhor pretende fazer uma nova viagem
em busca de outro exemplar do livro?

- Não, meu rei e senhor.

- Então se explique, nobre arauto.

- Durante o retorno eu li todo o livro e como tenho todas as histórias
na memória, posso contá-las, Majestade.

E por dois anos e duzentos e setenta e um dias, logo após a ceia no
castelo, o arauto contou para o rei, a rainha, os três príncipes, a
pequena princesa, nobres, fidalgos, cavaleiros e criados, as histórias
que a Scherazade contara no livro "As mil e uma noites".


- FIM -

Salvador, 21 de novembro de 2019.


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* Vingança tardia



Naquela quinta-feira de novembro Tombus City comemorava o Dia de Ação
de Graça, quando o povo aproveita o feriado para agradecer o ano que
passou e pedir um ano vindouro de fartura. As famílias, reunidas
num farto jantar à base de comidas típicas como peru, pão, abóbora,
batata-doce, purê, tortas variadas e outras iguarias, festejam esse
dia orando, perdoando e agradecendo a Deus pela fartura que tiveram.

Carros alegóricos, bandas de música e estudantes desfilavam na rua
principal quando Judy entrou na loja de armas e pediu ao dono um rifle
de repetição, mas o queria devidamente carregado. O homem lhe entregou
um dos melhores que tinha em sua loja. Ela apontou a arma para o
senhor e disparou em sua cabeça, matando-o instantaneamente.

- O rifle tá pago! - exclamou ela, saindo do estabelecimento.

O barulho do tiro foi abafado pelos sons das bandas.

A mulher chegou na igreja quando o povo estava saindo. Assim que avistou
o prefeito, acertou-lhe um tiro no peito. Também atirou no dono do
armazém e num fazendeiro abastado da região, matando a todos.

Enquanto o povo corria esbaforido, sem direção certa, ela se encaminhou
para a delegacia. O xerife, sentado numa cadeira de balanço, encostada
à parede do escritório caiu alvejado no peito por mais um tiro certeiro
da mulher. Ao ouvirem o disparo, os policiais saíram correndo e
encontraram o xerife morto e não virão para que lado o assassino fora.
Logo alguns homens que estavam na praça da matriz chegaram para
comunicar as mortes ao xerife e o encontraram morto.
Então eles disseram aos policiais que a assassina era a Judy, filha do
ferreiro Job.
Os homens se armaram e organizaram uma patrulha para prender a mulher,
que fora vista indo em direção à casa do juiz.
Indo por um atalho a patrulha chegou lá primeiro. Cada homem procurou
um local para se proteger e ficou aguardando a chegada de Judy.
Um dos policiais entrou na casa do juiz e lhe pôs a par dos
acontecimentos. O velho pegou seu revólver e postou-se sob a janela da
sala de sua casa.

Quando Judy adentrou a rua na qual havia uma emboscada para ela, parece
que percebera a presença dos homens, tanto que correu em direção à casa
do juiz, mas antes que alcançasse o portão, caiu de cara na poeira da
rua, alvejada por mais de quinze tiros.

O juiz agradeceu aos homens que salvaram sua vida, dizendo-lhes que
fora melhor ver a assassina morta ali do que vê-la enforcada.

O pai de Judy, o ferreiro Job, envergonhado e triste com a atitude da
filha, mas sabedor da razão daqueles assassinatos, contou no velório
aos amigos, e quem estava presente ouviu, que a filha matara aqueles
homens porque haviam abusado da sua confiança e a usaram sexualmente
quando ela era adolescente e apenas o juiz escapara da sua vingança.

Um mês depois o ferreiro deixava a cidade para sempre!


- FIM -

Salvador, 22 de fevereiro de 2020.


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* Um maestro quilombola



Aos cinco anos, juntamente com seus quatro irmãos menores, foi entregue
pela mãe que estava à beira da morte, a uma tia para serem criados.
O antigo quilombo que moravam ficava num morro, em terras do interior
da Bahia.
Lá embaixo passava a linha férrea e o menino, à tardezinha, descia e
acocorado perto da pequena estação, ficava apreciando a Maria-Fumaça
"beber água e comer carvão" para prosseguir sua viagem para a Bahia,
como diziam os mais velhos.

Até os sete anos ele tinha essa rotina, afinal, ver passar o trem era
uma alegria para as crianças. O maquinista e o foguista que eram sempre
os mesmos, já o conheciam e até trocavam acenos com o menino.

Um dia o chamaram e lhes mostraram o interior da cabine da locomotiva e
ele ficou deslumbrado. Por muitas noites o menino sonhou viajar de trem
para a Bahia.

Pela manhã frequentava a escola. Após o almoço, fazia as tarefas
escolares, brincava com outras crianças de sua faixa de idade, mas na
hora do trem passar acabavam todas as brincadeiras e ele descia para
esperar o trem.

Um dia pediu que o maquinista o levasse para a Bahia, pois queria ser
maestro. Ele aprendera a tocar uma rabeca que ganhara de um dos mais
velhos quilombolas e até tocou para seus amigos da locomotiva.

Num dia de folga, o maquinista subiu ao quilombo e falou com a tia do
menino. Prontamente ela o deu para o homem criar, pois assim teria uma
boca a menos em casa para alimentar. Juntou as poucas coisas da criança
num lençol e eles desceram para a capital no trem da tarde.

___

O maquinista morava no bairro ferroviário com a esposa e dois filhos
quase da idade do menino, que o receberam com amor e amizade. Logo o
menino se enturmou, pois era alegre, educado e respeitoso.

Uma professora de música que conhecia a família do maquinista ouviu o
moleque tocando sua rabeca e prontificou-se a dar-lhe aulas de piano,
sem cobrar nada, desde quando ele tirasse boas notas na escola que foi
matriculado, a mesma que estudavam os filhos do maquinista.

___

Aos dezessete anos concluiu o segundo grau. Incentivado pela professora
de piano, fez uma prova para estudar no Conservatório de Música sendo
aprovado.

Quatro anos depois formava-se em piano e já dava alguns concertos para
professores e colegas. Três anos mais tarde formava-se como maestro e
ganhara, num concurso, uma bolsa para estudar na Itália, berço de
grandes maestros. Estudou italiano com um professor do conservatório
já que a viagem seria dali a cinco meses.

___

Uma vez em Milão, trava conhecimento com importantes compositores como
Carlos Gomes, Verdi, Ponchielli, Boito, Puccini e Wagner, aprendendo
bastante com estes mestres sobre a composição de óperas, embora nenhuma
das suas obras tenham sido reconhecidas.

___

Ao completar sete anos em território italiano, decide retornar à Bahia
e torna-se diretor e professor do Conservatório de Música e regente
da Orquestra desta escola.
Na ocasião tem a honra de reger uma filarmônica para seus familiares e
amigos no bairro ferroviário que viveu com seus pais e irmãos adotivos.

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Vocês saberiam a qual maestro me refiro?

Não?

Não pensem que o conhecimento e a cultura de vocês deixam a desejar,
afinal, nem eu sei.

Sinto muito, mas a história acima eu sonhei esta noite!


- FIM -

Salvador, 30 de novembro de 2019.


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