quarta-feira, 29 de abril de 2020

12 contos de minha autoria

* A borboleta molhada



Desde criança que dormia encolhido, enrolado na coberta, cobrindo pés
e cabeça, do outono ao verão.

Naquele dia sonhara que era uma borboleta que acabara de sair do casulo
sob uma forte chuva. Com as asas molhadas, acaba caindo na terra.

Ao acordar, estava caído no chão do quarto e todo mijado.

- FIM -

Salvador, 23 de novembro de 2019.


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* A rainha destemida



A Rainha, ao perceber que seus cavaleiros não têm força para proteger
seu rei, decide enfrentar aquele bispo.
Nas duas primeiras investidas da dama, o bispo se escondeu atrás de
uma torre, mas na terceira tentativa ela consegue vencê-lo e ainda dar
um xeque-mate no rei dele.

O jogo acabou. Venceu as pretas.


- FIM -

Salvador, 19 de novembro de 2019


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* No tempo da Maria Fumaça



Ao chegar numa pequenina estação, o maquinista resolveu não parar o
comboio, mas baixou a velocidade o máximo possível.
O trem andava mais devagar do que um caracol, mesmo assim alguns
passageiros não conseguiram subir.
Então o maquinista parou o trem uns cem metros adiante.

As pessoas saíram correndo e, num piscar de olhos, conseguiram acessar
os vagões.

O maquinista vira-se para o foguista e exclama:

- Eles podem ser lerdos que nem uma lesma, mas são ótimos corredores!


- FIM -

Salvador, 24 de novembro de 2019.


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* As moscas briguentas



Duas moscas voavam e em pleno voo lutavam disputando o que restara
de um ovo podre dentro de um pedaço da sua casca que repousava no
latão de lixo.

A elas se reuniram outras, querendo desfrutar da iguaria ao dispor
delas, mas sem qualquer intuito de lutarem.

E as duas primeiras moscas entenderam que não adiantaria se matarem
pelo petisco, afinal, como comem tão pouco, daria para dividirem entre
todas o filão.
Então as briguentas baixaram a guarda e pousaram sobre o ovo podre.
De repente, distraídas, não ouviram um sibilar de aerosol e uma nuvem
de inseticida caiu sobre elas. Todas morreram.
E a tampa do latão foi baixada.


- FIM -

Salvador, 1 de novembro de 2019


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* O tapete voador



O jovem queria ser empresário, mas não sabia como empreender e no que
aplicar a grana que herdara dos pais, mortos num acidente num tapete
voador que desfiou, jogando-os ao chão de uma altura de 60 metros.

Ainda bem que eles, os velhos, haviam feito um seguro de vida do qual
ele era o beneficiário.
E foi essa grana do seguro que ele pretendia investir, afinal, se
deixarmos nossa grana parada, a inflação desvaloriza logo logo,
principalmente se estiver em conta corrente sem que seja aplicada.

Então ele pensou e pensou: O que sei eu fazer? Nada!

Então teve uma ideia supimpa.

Comprou vários tapetes voadores, costurou uns aos outros e assim iniciou
sua frota de tapetes voadores coletivos.

E ficou mais rico ainda com essa ideia!


- FIM -

Salvador, 17 de janeiro de 2020.


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* O vigia do museu



Era um exímio entalhador e trabalhava como vigia noturno num museu de
história natural.
Também gostava de pintar e seus quadros eram bastante apreciados pelos
familiares, amigos, colegas e seus superiores.
Entalhava santas, santos, figuras humanas, animais, deusas, deuses e
aquilo que pedissem.
Pintava natureza morta, paisagem, retrato, casario e até por encomenda.

Gostava muito de armar quebra-cabeça, móbile e arapuca para pegar
passarinho. Também fazia gaiolas e esculturas em arame.
Morava numa casinha no fundo do museu há mais de 10 anos e que fora
cedida pela diretoria. Esta casa ficava perto do lago e do bosque que
havia nos fundos do museu e que a este pertencia.
Morava sozinho, pois a esposa morrera e os dois filhos foram trabalhar
noutras paragens.
Pela manhã fazia o almoço, a sopa e o jantar. À tarde dormia até as
seis horas, quando tomava banho, bebia sua sopa, jantava e ia vigiar
o museu. Essa era sua rotina, além dos prazeres do entalhe e dos seus
outros passatempos.

Porém, o que mais gostava na vida era sopa de tutano!

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Quando o museu incendiou foi que os peritos descobriram que os ossos
dos dinossauros eram quase todos esculpidos em madeira e pintados.


- FIM -

Salvador, 7 de dezembro de 2019.


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* Os pombos da praça



O céu estava azul claro e sem nuvens, como diriam os aviadores, "um céu
de brigadeiro".

Decidi dar um passeio nos arredores e caminhei até a praça da matriz.
Ali, no meio da praça, sentado numa cadeira de braços mais antiga do
que minha lembrança, com um livro em braille nas mãos, pouco se
importando ou se incomodando com os pombos que pousavam em sua cabeça,
seus ombros, nos braços da cadeira ou no livro que trazia aberto sobre
as coxas, na mesma página há muito tempo, certamente distraído com a
leitura, sem sequer piscar, o homem parecia sorrir.

Em volta da sua cadeira, migalhas de pão, alguns grãos de milho
quebrados serviam de alimento aos pombos.

Talvez, entre estes, houvesse alguma pomba, símbolo da Santíssima
Trindade, mas não havia como distingui-la entre as aves.

E, aqui pra nós, não vi nada de santo naqueles pombos impertinentes e
chatos. Alguns, que pousavam na cabeça do homem, a bicavam como se
catassem lêndeas ou piolhos, sei lá.

Em nenhum momento ele se mexeu ou fez cara feia, não que sua cara fosse
bonita, mas como disse lá em cima, ele parecia sorrir da situação.

Em sua camisa, nos ombros e até mesmo nos braços, algumas manchas
escuras deixavam ver que os pombos não tinham qualquer respeito pelo
sujeito e ele ali, quieto, sem nada fazer.

Eu, sentado num banco próximo a ele, conjecturava:

- Se este homem não fosse uma estátua, certamente não teria qualquer
consideração a estes pombos abusados!


- FIM -

Salvador, 8 de janeiro de 2020.


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* Cadê Sua Graça?



Era janeiro. O sol já ia alto quando a comitiva real chegou ao castelo
do Duque. Baixada a ponte levadiça, o arauto disse aos soldados a que
viera. Alguns minutos depois um soldado mensageiro veio recebê-lo ao
portão e lhe disse que Sua Graça não atendia antes de acordar nem antes
do seu desjejum.
Então a comitiva retornou ao castelo do rei.

Era junho. O sol estava bem em cima da comitiva real quando esta chegou
ao portão do castelo do Duque.
Baixada a ponte levadiça o arauto disse aos soldados a que viera.
Alguns minutos depois um soldado mensageiro veio dizer-lhe que Sua
Graça não atendia durante o almoço nem antes da sesta.
Mais uma vez a comitiva retornou ao castelo do rei.

Era dezembro. O sol estava se pondo quando a comitiva real chegou ao
castelo do Duque.
A ponte levadiça foi baixada e o arauto disse aos soldados a que viera.
Sua Graça, pessoalmente, veio recebê-lo.
O arauto do rei, estendendo-lhe um mandado real, deu-lhe voz de prisão.
Dois cavaleiros da comitiva real seguraram o Duque pelos braços e o
fizeram montar num cavalo que lhe fora destinado.
E a comitiva real retornou ao castelo do rei com sua missão cumprida.

Os soldados do Duque ficaram admirados, mas nada disseram, embora a
notícia da prisão de Sua Graça fosse espalhada pelo castelo. Como se
soube depois, até que não houve muito choro.

E o reveillon do Duque foi na masmorra com ratos, baratas, aranhas,
mosquitos e uma jarra de água e um pão duro.

- FIM -

Salvador, 13 de novembro de 2019.


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* A última pelada



O selecionado de Estrela fora convidado para um amistoso na vizinha
Vale do Paraíso.

Contrataram um ônibus para levar os quinze jogadores da equipe. O
percurso era de cerca de duzentos quilómetros e a viagem levaria pouco
mais de duas horas. Os jovens jogadores cantavam, tocavam e brincavam
com a alegria da despreocupação e certos da vitória naquele jogo.
Após o veículo ter percorrido uns cem quilómetros, numa curva sinuosa o
motorista do ônibus se depara com uma carreta ultrapassando outra.
Para evitar a colisão, que seria fatal, ele joga o ônibus para o
acostamento do seu lado da estrada, mas o acostamento é estreito e o
pesado veículo derrapa e rola a ribanceira, enquanto as carretas
desaparecem na próxima curva.
O ônibus Capota umas cinco vezes e para lá embaixo todo quebrado e
amassado, embora esteja com as rodas para baixo e encostado a algumas
árvores. Logo o motorista abre a porta e todos saem do ônibus.
Um dos rapazes sai com uma bola de couro na mão.
Um pouco adiante, após algumas árvores, eles vêm um descampado, então
um dos jovens tem a ideia:

- Vamos jogar uma pelada até que o socorro chegue?

Todos concordaram e dividiram os times, destacando o motorista para
goleiro no time dos sem camisa.

A equipe dos de camisa já ganhavam por seis a três quando um carro da
Polícia Rodoviária parou lá em cima, no acostamento da estrada e os
dois patrulheiros desceram a terrível encosta.
Ao entrarem no ônibus, constataram que os dezesseis ocupantes do veículo
estavam mortos.


- FIM -

Salvador, 18 de novembro de 2019.


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* A aranha vingativa



Pela manhã, ao escovar os dentes, senti alguma coisa tocar em minha
cabeça. Passei a mão e o fio de uma teia enganchou-se em meus dedos.
Ao procurar a aranha, descobri que ela me olhava da prateleira que há
sobre a pia.
Peguei a sandália e coloquei diante dela, ela então subiu e continuou
me olhando. Agachei-me e a sacudi no chão.
Calcei minha sandália e não lhe dei atenção.
Após escovar os dentes, lavar o rosto e trocar de roupa, fui pra
cozinha.
Fiz meu café e sentei-me à mesa para fazer meu desjejum.
Quando saboreava meu café, senti numa das pernas um toque sutil.
Passei a mão e novamente trouxe um fio de teia nos dedos. Descobri que a
aranha me seguira e estava me olhando da fruteira.
Não lhe dei atenção e acabando de tomar meu café fui escovar os dentes
e depois me dirigi ao gabinete. Liguei o computador, abri as janelas
e me sentei diante do teclado. Enquanto aguardava a máquina iniciar,
senti, mais uma vez, um leve toque no braço esquerdo. Mais um fio de
teia havia sido lançado pela aranha que me olhava da mesa do
computador.
Tirei o fio e a olhei de cara fechada:

- Você tá querendo o que, Dona Aranha? - perguntei esperando uma
resposta.

Ela continuou me olhando e não disse nada.
Cheguei a pensar que ela queria me transformar no segundo Homem Aranha
brasileiro, afinal, o primeiro andava escalando paredes para roubar
nos apartamentos. Pensei:

"Será que ela quer me provocar ou apenas deseja chamar minha atenção
para ela? Será que ela quer ser meu animalzinho de estimação?"

Quando o micro falou, ela tomou um susto e caiu da mesa do computador
no chão. Olhei pra ela e vi que corria para debaixo do sofá.
No resto do dia não a vi mais. Acho que ela só queria vingar-se por
eu havê-la importunado no banheiro.


FIM

Salvador, 1 de novembro de 2019


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* O cemitério da serra



Durante 35 anos na boleia da carreta azul ele levara progresso,
bem-estar e alegria para os quatro cantos do país.
Como era um motorista esforçado, trabalhador e responsável, sua
empregadora, a Transportes Pesados, o aposentou com todos os direitos
que merecia. Após dois meses em casa, parado na rotina do nada fazer,
falou para a esposa e seus dois filhos rapazes que voltaria à Vida de
caminhoneiro. E assim fez.
Comprou uma pequena carreta branca, voltou às estradas e novamente era
um homem feliz.
Cinco meses depois, descendo a famosa Serra dos Trambolhões carregado
de manganês, no trecho conhecido como curva dos fantasmas, sentiu uma
mão gelada em seu ombro, perdeu o controle da direção e a carreta saiu
da estrada, descendo desgovernada pela ribanceira. após rolar pela
encosta de pedras, caiu sobre os destroços de outros veículos que
tiveram o mesmo destino do seu.

Com dificuldade, a empresa que a Polícia Rodoviária Federal contratava
para resgatar os corpos das vítimas dos acidentes naquele trecho,
conseguiu entregar o corpo do carreteiro à sua família e o moço foi
enterrado no cemitério de sua cidade natal.
A seguradora considerou o acidente como perda total, da mesma forma que
outras faziam nesses casos e pagou à viúva e seus filhos a indenização
que lhes cabia e que daria para comprar outra carreta, mas eles
preferiram receber em espécie. E assim foi.

Com a pensão que a viúva passou a receber do INSS e a grana do seguro
da carreta, ela e seus filhos compraram um ponto no bairro que moravam
e montaram um pequeno supermercado. Hoje têm três filiais espalhadas
pela cidade.

Voltando ao local do acidente, vemos alguns homens fazendo o desmonte da
carreta branca para abastecer o comércio de peças usadas existente na
parte baixa da serra, da mesma forma que fizeram com todos os veículos
acidentados na descida da perigosa serra.

E a vida continua!


- FIM -

Salvador, 24 de janeiro de 2020.


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* Surfista frustrado

Luís Campos (Blind Joker)


Aos sete anos brincava de gude, jogava pião, empinava pipa; fazia de
uma garrafa de água sanitária cheia de pedrinhas, um pedaço de arame e
cordão, um carro porreta para quem não tem brinquedo comprado.

Aos oito anos jogava bola de meia, brincava de esconde-esconde,
pega-pega e gostava de pendurar-se na traseira dos caminhões de
carroceria, até que caiu. Machucou-se um pouco, teve algumas raladuras e
quase foi atropelado, mas o pior foi o susto. Então desistiu dessa
brincadeira.

Aos dez anos aprendeu a deslizar na praia sobre um pedaço de tábua,
quando a onda que quebrava na areia retornava ao mar. Brincou muito
disso, até que levou uma queda, bebeu muita água e encheu a boca de
areia. Achou melhor procurar uma brincadeira mais segura.

Ainda na praia, via os louros bronzeados surfando e gostou daquilo, mas
havia ficado com medo do mar e de suas ondas, mesmo assim, roubou uma
daquelas pranchas e foi deslizar sobre ela num pequeno e raso riacho que
corria próximo à sua casa. O problema era as pequenas curvas que o
riozinho fazia e ter que, após a brincadeira, lavar a bosta que ficava
grudada na prancha. Cansado, deixou mais essa brincadeira.

Aos treze anos roubou um skate e foi ser surfista de asfalto. Andava
pelas ruas agarrado aos ônibus em grande velocidade, mas aí, numa curva
foi jogado contra um poste. Como disse a enfermeira do pronto-socorro,
Graças a Deus apenas quebrou um braço e teve alguns arranhões.

Aos quinze queria mais emoção e ao ver alguns caras surfando nos trens,
ficou bolado e quis fazer o mesmo.
Observou os carinhas por alguns dias até que achou que dava conta de
fazer o mesmo. Subiu pela janela para o teto do trem como alguns outros
faziam e prestou atenção nos demais.
Mas, nessa sua estreia, com o vento batendo no rosto, a adrenalina em
alta, descuidou-se e bateu no fio de alta tensão, sendo jogado a cerca
de vinte metros, caindo sobre os trilhos.
Já morto, foi atropelado pelo comboio que vinha em sentido contrário.


- FIM -

Salvador, 28 de novembro de 2019.

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