quinta-feira, 23 de abril de 2020

Um comercial de futuro

Havia um grupo de vestibulandos daquela cidade na rede social.
Ao receberem o resultado das provas, sete moças que haviam passado
criaram um outro grupo, pois elas tinham em comum a intenção de morar
próximo da Universidade, afinal, não teriam como continuar morando no
interior delas e cursar uma faculdade na capital.
E assim fizeram.

O pai de uma delas, comerciante forte na cidade, alugou uma casa e
montou uma república para as sete moças morarem.
Elas se matricularam no mesmo dia e já moravam juntas. O aluguel, as
despesas e a manutenção da casa eram divididas por todas.
Mutuamente se ajudavam nos trabalhos da faculdade e, muitas vezes,
estudaram juntas para as provas.

Esses anos não foram fáceis, mas todas se formaram com louvor. Cada
uma seguiu seu caminho profissional, mas continuaram amigas e sempre
que necessário, davam uma forcinha umas às outras.
Lisa fizera o curso de Cinema e, com a ajuda da família criou uma
pequena agência de modelos e logo encaminhava moças e rapazes para
fazerem figuração em filmes, novelas, comerciais para televisão e
ensaios fotográficos. Em três anos a Agência Monalisa era bastante
conhecida no mercado. Lisa foi contactada para fazer um comercial
institucional sobre os pequenos moradores de rua.

Após uma pesquisa na Internet, saiu em busca dos "atores" nas ruas
centrais da cidade. Sentado sob a marquise de uma loja com as portas
ainda fechadas, viu um menino com cerca de 10 anos e se aproximou.
- Olá, tudo bem?
- Não! Eu tô com fome.
- Então vamos fazer um lanche, topa?
- Topo! - respondeu o menino, levantando-se.

Então Lisa pegou em sua mão e, de mãos dadas, eles entraram numa enorme
lanchonete. Sentaram-se à uma mesa e quando o garção chegou, Lisa disse
ao menino:
- Diga a ele o que você quer comer.
- Quero o maior sanduíche que tem aí... com carne, ovo e queijo.
- Está bem, meu jovem. E pra beber?
- Traga um refrigerante de guaraná. - disse o menino.

Enquanto aguardavam a chegada do lanche, Lisa conversava com o garoto:
- Como é seu nome, rapazinho?
- Na rua me chamam Dito, mas meu nome é Fernando.
- Onde você mora, Fernando... e com quem?
- Na rua da maré com minha mãe e meu irmão menor.
- Eu poderia falar com sua mãe?
- O que você quer com ela?
- Quero lhe pedir que deixe você participar de um pequeno filme que
quero fazer com você e seus amiguinhos da rua.

- Isso você pode falar comigo mesmo, né?
- Mas além de falar com você, tenho que falar com sua mãe, porque você
é só um rapazinho.
- Eu sou um homem, moça...
- Meu nome é Lisa, Fernando. - interrompeu a moça.
- Lisa, eu posso decidir se quero ou não entrar nesse filme. Eu vou
aparecer na TV?
- Vai, sim... em todo o Brasil.

Nesse momento o garção chega com o sanduíche e o refrigerante.
Enquanto Fernando come seu lanche, Lisa o admira como se o visse
diante das câmeras e pensa como o menino fotografa bem.
Quando o garoto acaba de comer, dá um grande arroto. Lisa não diz nada,
apenas sorri.
- Enchi a barriga, Lisa. Desde ontem que não como nada.
- E por quê?
- Porque as pessoas não dão nada a gente. Elas pensam que queremos
roubá-las, mas a gente só quer algumas moedas pra comprar um pão.
- Hoje em dia está difícil confiar nas pessoas, Fernando, mesmo nas
crianças que nem você. Você vai me levar para falar com sua mãe ou não?
- Vou sim... você é muito boazinha.
- Então vamos pegar um táxi para ir até sua casa.
- Eu nunca andei de carro... só de buzu.
- Você sabe dizer ao motorista onde fica sua casa?
- Sei!

Antes de sair, Lisa encomendou ao garção um outro sanduíche igual ao
que Fernando comera e mandou que embrulhasse para viagem. Também pegou
um refrigerante em lata. Ela pagou a conta e eles saíram.
Lisa parou um táxi e eles entraram. Dito falou ao motorista a rua que
morava e o carro partiu. Cerca de meia hora depois o veículo parava
diante de algumas palafitas.
- Chegamos, moça. - disse o taxista.
Lisa pagou a corrida e eles saltaram. Fernando ia na frente e Lisa o
seguia. O menino subiu numa ponte de madeira sobre a maré, quem nem
outras que havia ali e levavam a casas construídas sobre varas fincadas
no fundo daquele pequeno braço do mar.
A porta da casa estava aberta e lá dentro uma mulher esquentava alguma
coisa num fogão de duas bocas, enquanto uma criança de uns quatro anos
brincava com um carrinho no chão de madeira.

- Mãe, trouxe uma moça que quer falar com a senhora.
- Bom-dia, Senhora. Meu nome é Lisa e quero falar com a senhora sobre o
Fernando.
- Olhe aqui, moça. Eu sou pobre, mas não dou meus filhos a ninguém.
- Não é isso que quero, Dona...
- Meu nome é Aída, mas pode me chamar de Dê.
- Pois é, Dona Dê. Sou dona de uma agência de modelos e quero que o
Fernando apareça num pequeno filme que farei.
- A gente vai ganhar algum dinheiro? - perguntou Aída, enquanto o
menino menor se agarrava à sua saia.

- Claro que sim, Dona Dê, mas só depois que o filme for feito.
- Sei... aí você e seu dinheiro nunca mais aparecem por aqui, né?
- Nada disso, Senhora.
- E como eu posso confiar na moça se não a conheço?
- É o seguinte. Se arrume, arrume seus filhos que os levarei para
almoçar na cidade e para conhecer minha agência.
- E como faremos para voltar?

- Eu darei o dinheiro para o táxi.
- Está bem! - respondeu a senhora desligando o fogão e colocando a
panela sobre um caixote.
Lisa virou-se para a criança menor e lhe perguntou:
- E você, rapazinho, como é seu nome?
- José. - falou baixinho o menino.
- Olhe o que eu trouxe para você, José. - disse Lisa, entregando o
sanduíche e a latinha à criança.

O menino abriu um largo sorriso e segurou o embrulho. Fernando,
aproximando-se, disse:
- Deixe que eu lhe ajudo, Zezinho.
- Não! Você quer tirar um pedaço. - respondeu o menino.
- Você não vai dar um pedacinho pra mamãe, filhinho? - perguntou Aída.
- Pra senhora eu dou. Tome aqui. - disse o menino tirando um pedacinho
do sanduíche e entregando à mãe.
- Obrigada, filho.

E Dona Aída, com um sorriso, comeu o pedaço do lanche que o filho lhe
dera. Fernando abriu a lata do refrigerante para o irmãozinho, que,
desconfiado, não largou a lata.
Na casa não havia divisão. Era um vão só com uma cama de casal,
algumas caixas contendo roupas, duas cadeiras e uma mesa mambembe. Num
dos cantos havia um buraco no chão que Lisa supôs ser a latrina deles.
E era!

Meia hora depois eles estavam num táxi rumo ao centro da cidade.
Desceram em frente ao prédio que ficava a Agência Monalisa. Ao entrarem
no escritório, a secretária de Lisa lhe disse que havia alguns recados
sobre sua mesa. Lisa, dizendo a Dona Aída que ficasse à vontade com os
meninos, entrou em sua sala. Ligou o computador, leu os recados, fez
duas ligações e depois saiu para convidar Dona Aída e os meninos para
entrarem em sua sala, convidando-os a sentarem diante de sua mesa.
Então Lisa leu para Dona Dê os termos do contrato do Fernando.
- A Senhora está de acordo ou alguma coisa não ficou clara?
- Você vai mesmo pagar isso tudo pro meu Fernando?
- Claro, Dona Dê. E assim que a Senhora assinar o contrato eu lhe darei
um adiantamento. O restante será pago assim que eu receber dos meus
contratantes.
- O que é contratantes? - perguntou a mulher.
- São as pessoas que me contrataram para fazer o filme com o Fernando,
como agora estou fazendo com a Senhora.
- E quando o Fernando fará esse tal filme?
- Na semana que vem. Eu irei buscá-lo em sua casa e vocês todos ficarão
hospedados em minha casa, enquanto estivermos filmando.
- Que chique, Dona Lisa. Então me dá logo esse papel pra assinar.

Lisa imprimiu o contrato em três vias, entregou à mãe do Fernando para
assinasse e também apôs sua assinatura.
Eles desceram do escritório e Lisa escolheu um restaurante discreto na
Rua das Vendas. Após o lauto almoço, Lisa os colocou num táxi e
marcou de pegá-los na terça-feira próxima.
Lisa arrumou o quarto de hóspedes para Aída e os meninos. Colocou três
camas de solteiro e um guarda-roupa. Comprou roupas de cama e banho
para os três e foi buscá-los.
Quando eles chegaram na casa de Lisa ficaram maravilhados com a beleza
e o conforto. Como prometera, Lisa lhes disse que eles ficariam com ela
até terminarem as filmagens do comercial.

Ela saiu com os três e lhes comprou roupas decentes e apresentáveis.
Lisa disse a Dona Aída que, naquele período, ela assumiria os afazeres
da casa, em troca de um salário. A mulher aceitou e já foi cuidar do
jantar, já que na despensa havia mantimentos para, no mínimo, um mês.
Naquela mesma semana iniciou-se as filmagens, tendo o Fernando dado
conta do recado, juntamente com os demais participantes do filme,
figurantes da própria agência da Lisa.

O comercial foi produzido em menos de cinco semanas e quando foi levado
ao ar, fez o maior sucesso, sendo, inclusive, convidado a participar de
uma mostra internacional.
Com este comercial Lisa passou a ser requisitada para dirigir outros
comerciais e até filmes. Dois meses depois recebeu o dinheiro pelo
trabalho, pagou o acertado com Dona Aída e, como vivia sozinha, a
convidou para continuar morando com ela, juntamente com os meninos.

Colocou as crianças na escola e passou a viver em função dessa nova
família. quatorze anos depois Fernando se formava em Direção teatral
e era admitido como sócio na Monalisa. José, seu irmão menor, cursava
jornalismo. Dona Aída tornara-se amiga e confidente de Lisa e
envelheceram juntas. Sempre que possível, Lisa viajava com eles e
várias vezes visitaram a casa dos pais de Lisa no interior.
Quando Lisa tinha 58 anos e Aída 64, já eram avós dos filhos do José
e do Fernando. Os rapazes, bem sucedidos em suas profissões, casaram
e tinham dois filhos cada, que eram a alegria da casa quando visitavam
Lisa e Dona Aída, duas vovós babonas.

Por causa dos "netos", Lisa comprara uma casa maior e mais confortável
e tornou-se uma obrigação prazerosa receber os rapazes, seus filhos e
suas amadas esposas nos domingos.
E assim foi até que chegou o momento de cada um deixar esta vida!


- FIM -

Luís Campos ()Blind Joker
Salvador, 4 de fevereiro de 2020.

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