Luís Campos (Blind Joker)
As reminiscências da Odetinha e do seu irmão me fizeram lembrar as férias que passava em Nazaré das Farinhas, cidade do recôncavo baiano, na qual nasci, mas morei apenas uns dois anos, pois vim ainda pequeno com meus familiares residir em Salvador.
As viagens, das quais lembro claramente, já eram uma "viagem". Elascomeçaram, salvo engano, quando eu tinha uns cinco anos. Como meu pai era funcionário público, alguns dos meus irmãos mais velhos nasceram em cidades do interior da Bahia. Nesta época, embora toda a família residisse em Salvador, meu pai viajava semanalmente a Nazaré, onde além de trabalhar, era vereador. Lembro que ele ia para lá na segunda ou terça, retornando na sexta ou no sábado e isso até 1965, quando aposentou-se e ficou definitivamente em casa.
Em Nazaré eu ficava na casa de Vanda, minha madrinha, ou na casa de Leonor, uma afilhada dos meus pais. As duas disputavam quem iria me hospedar: eu devia ser umagraça, né? (Risos)
Das gratas recordações que tenho destes dias em Nazaré das Farinhas, estão as fériaspassadas na casa de Leonor. Nós dormíamos no sótão. Era muito legal ficar lá de cima olhando para a cidade cortada pelo Rio Jaguaripe, tanto de dia, quanto pela noite. Lá de cima eu via a Ponte da Conceição e a da Muritiba que ligavam os dois lados da cidade. Eu ficava fascinado com a passagem dos poucos carros, das carroças, dos aguadeiros, dos cavaleiros e amazonas, dos burros e jegues com seus "panacuns ou caçuás" cheios de cargas diversas, de gente andando pra lá e pra cá e, o mais gostoso, a chegada e a partida do trem, com seu apito estridente e inesquecível.
Lembro de haver presenciado uma das enchentes do Rio Jaguaripe e de ter gostado de ver a agitação que tomou conta dos habitantes locais. Naquela idade não tinhanoção dos prejuízos causados por uma cheia, tudo é festa. As águas revoltas traziam galhos, pequenas árvores, animais mortos, móveis e outras tralhas que não lembro. Quando o rio baixava os moradores faziam a limpeza da lama que o rio deixara nas casas, ruas e calçadas às margens deste. Para mim, sendo criança, era um espetáculo.
Além dessa "diversão", quase todas as tardes subia um morro de barro que ficava numa rua atrás da casa de Leonor para descê-lo sentado sobre uma pequena tábua. Eu chegava em casa com o short da cor de barro. Outra maravilha eram os pirulitos de caramelo que a mãe de Leonor fazia, chamados de "chorêtes".Quando a calda do caramelo estava "no ponto", era despejada em duas formas de chumbo que eram prensadas para dar os formatos que se queria: boneco, porco, chupeta, elefante, flor, corneta, coelho, cachimbo, rinoceronte... e outros que não lembro. Os sabores também variavam: laranja, morango, goiaba e jenipapo.Depois de "duros", eram passados no açúcar cristal. Lembro das deliciosas cocadas de goiaba e coco; das balas de jenipapo e goiaba; das rapaduras com coco e das bolachinhas de goma. Haja apetite... e olho grande.Quase toda a "produção" ia para as "vendas" (denominação dada aos pequenos armazéns nesta época).
Tinha também as brincadeiras noturnas: tubarão (dono do passeio); roda (ciranda); pega-pega; chicotinho queimado; batalhão... entre tantas cuja idade faz esquecer.
Vez por outra me armava de uma vara fininha e dizia que ia pescar no Jaguaripe que passava defronte da casa de Leonor e, nesta parte, era bem raso. Nunca pesquei nada,apenas alimentava os peixes com as minhocas. Mas lembro que eu mesmo fazia o anzol com um alfinete que Dona Lourdes me dava. Nestas ocasiões eu aproveitava para, "sem querer", molhar-me bastante, sendo "obrigado" a tomar um banho nas águas mornas do rio. Mas a culpa era dos peixinhos que, "ao pularem na água", me molhavam. Leonor apenas sorria e me levava pro banho.
Também gostava de ir à feira com ela: comia um monte de guloseimas que ela comprava pra mim. Perto da casa dela havia uma quadra com algumas "vendas" e eu ia pracomprar besteiras com as moedas que ela me dava. Um dos seus irmãos fazia pequenos caminhões de madeira que eram muito bacanas de brincar, pois tinham um varão que saía da carroceria, logo atrás da cabine e tinha um pequeno volante que comandava o eixo dianteiro permitindo as manobras e curvas. Eu sempre estava "viajando"pelas estradas deste nosso rincão, carregado de pedras que "eram" mercadorias diversas, isto é, açúcar, farinha, fumo, café, dendê e "algodão".
Minha madrinha Vanda residia do outro lado do rio, no bairro do Batatan.Ela era solteira e morava com a mãe, Dona Zozó, uma tia, Dedé, e duas irmãs, Alaíde e Zozó. Quando estava em sua casa, as brincadeiras eram um pouco diferentes daquelas que brincava quando ficava com Leonor.
O quintal era grande e comprido e tinha muitas árvores, principalmente o fruta-pão. Como o tronco deste dividia-se em vários outros, deixando um espaço entre estes, eu brincava ali de maquinista e no meu "trem" imaginava longas viagens pelo interior daBahia. Algumas vezes virava padeiro, fazendo do fruta-pão ainda por formar-se (é comprido, fino e amarelo, antes de virar aquela "bola") de pão. Abria este "pão" e colocava "manteiga" (polpa de fruta-pão podre) e colocava à venda para meus fregueses imaginários, pois sempre brincava sozinho. Suas grandes folhasverde-escuro serviam como dinheiro. Areia era farinha ou açúcar, tijolo em pó virava coloral, pequenos galhos faziam às vezes de carne, outras de aipim. Eu era "dono do negócio" e freguês, ao mesmo tempo. Tudo era mágico para minha fértil e infantil criatividade.
Também pescava camarão num pequeno rio que desaguava no Jaguaripe e passava nos fundos da casa de Zozó, uma das irmãs de minha madrinha que havia casado. Metendo a mão por baixo das pedras conseguia pegar uma meia dúzia de pequenos camarões e levava pra minha madrinha fazer uma "moqueca"... e ela fazia! (Risos)
Este mesmo rio , ali perto, mas onde não havia casas, era largo e tinha um local chamado de "Louro", onde os homens tomavam banho nus.Um pouco mais adiante era o "poço das moças"... e eu e alguns amiguinhos sempre íamos, escondidos pela folhagem, dar uma espiadinha. Infelizmente a maioria das mulheres banhavam-se de calcinhas.
De vez em quando passava uma boiada na frente da casa de minha madrinha. Era um tal de correr gente pra dentro das vendas. Eu ficava na alta janela da casa pra ver osbois passarem, nem sempre obedecendo o aboio dos vaqueiros e ameaçando entrar nas vendas, sendo enxotados pelos fregueses.
Os trilhos da ferrovia passavam bem no meio da rua que ela morava e todos os dias o trem vinha de Jequié pela madrugada e retornava ao meio-dia.Era curioso ver o trem passar na frente da casa, todos os dias, puxado por uma locomotiva e uma outra atrás ajudando a empurrar os vagões. Dizem que era porque uma só não agüentaria puxá-los ao subir uma ladeira que havia no Onha, um dos distritos de Nazaré.
Em Nazaré ficava uma das oficinas de manutenção dos trens e eu gostava de olhar aquele monte de rodas, locomotivas e vagões "aposentados", pedaços de trilho,dormentes e os troles (um retângulo de madeira montado sobre rodas de trem e que era movido pelos homens que iam neles e serviam para realizar pequenos consertos na ferrovia). Perto da dali ficavam a fábrica de dendê e a de tecido. Mais uma festa para meus olhos.
Ao lado da casa de minha madrinha havia uma grande igreja, a qual, para mim, tinha aspecto fantasmagórico. Eu ficava com medo dos "imensos" morcegos que toda noite saíam e entravam em suas torres.
Quando eu urinava na cama e ela me perguntava se fizera isto,dizia-lhe que fora a chuva... como chovia em Nazaré! (Risos)
A tia dela, Dona Dedé, fazia bolachinhas de goma para vender. Eram assadas num enorme fogão a lenha, em grandes bandejas quadradas. Antes mesmo que asbolachinhas fossem ao forno, eu "roubava" algumas e fugia para comer no quintal. Dona Dedé nunca reclamou comigo e ainda me dava algumas já assadas. Doces lembranças!
Alaíde me levava pra escola que ela ensinava e que distava uma légua de sua casa. Lá, enquanto ela dava aula, eu brincava nos arredores da escola, subindo em árvores e comendo ingá. Mas, vez por outra "assistia" às aulas... nunca obrigado.
Muitas vezes, com alguns amigos, acompanhava os aguadeiros até afonte de "água de beber" e os ajudávamos a encher os barris para ganharmos uma "voltinha" no jegue. Além desta folia, a gente subia nos pés de cajus para pegarmos alguns. Na volta eu passava numa espécie de garagem e o senhor que guardava enormes vasilhames de bronze com garapa de cana para fazer cachaça e rapadura, me dava um pouco para levar pra casa e que eu comia com farinha. Uma delícia!
Outro divertimento era andar equilibrando-se sobre um dos trilhos ou então pulando de dormente em dormente. Ver carros de boi, carroças, burros de carga, gente grande e pequena, os aguadeiros e o trem passar, era uma alegria para meus olhos de criança. Ainda lembro os nomes de alguns bairros de minha cidade natal: Cortume, Muritiba, Morugus,Apaga-Fogo, camamu, Cidade Palha, Batatan, Conceição, Pasto da Serra, Volta do Tanque, Caminho dos Remédios, Catiara, Alto do São José, Ladeira Grande e Centro. Algumas vezes ia com minha madrinha ao "Remédio" para tomar banho no rio Jaguaripe. O local era cheio de pedras, o que contribuía para que a diversão fosse mais gostosa e lúdica.
Lembro de haver participado de umas duas procissões de São Roque e Nossa Senhora da Purificação de Nazaré, nas quais, para acompanhar os cânticos e louvores do povo, contava-se com os músicos da Filarmônica Erato Nazarena.
Também comprava muitas miniaturas na famosa Feira de Caxixis que acontece durante a Semana Santa, sendo a maior atração turística da Cidade nesta época e é "armada" na frente do tradicional Mercado dos Arcos (onde se vendia todo tipo de farinha ede tapioca) e na margem do Rio, próximo da Ponte da Muritiba.
Logo em seguida vem a Micareta (espécie de carnaval fora de época) que começa no Sábado de Aleluia e dura três dias.
Não poderia terminar esta crônica sem convidá-los a visitar esta cidade histórica para conhecer seus casarões coloniais, suas igrejas centenárias e suas travessas e becos de casas desalinhadas como se fazia no século XIX. Não esqueça de visitar o monumento "Jesus de Nazaré" e o santuário que fica abaixo deste com suas esculturas feitas em barro, lembrando a via sacra e ornando o caminho que conduz ao Cristo. Também é em Nazaré que está o Cinema Rio Branco, um dos mais antigos cinemas da América Latina, ainda em funcionamento, que foi comprado e reformado pelo jogador nazareno, Vampeta.
Nazaré também é pródiga nas artes e na literatura, mas isto é tema para uma futura crônica.
Continua...
terça-feira, 13 de outubro de 2009
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